Fragrância de amêndoas

Foi decretada a nova ordem,

acabaram com os poemas,

sumiram com os sonetos

e as rimas de amor.

O amor já não existe mais,

nem o carinho.

Nem as canções de amor,

que eu fiz para você.

Fazia um bom tempo que não me sentia assim, livre! A alegria de estar novamente em um palco, cantando para meus fãs, não pode ser medida ou quantificada. De cima do palco, observo atentamente, pequenos rostos ao longe que me parecem estranhos, porém eles me acompanham em coro, enquanto dedilho as levadas de meus quatro acordes. As luzes que tomam conta do palco, em círculos espirais... Verde, roxo, um laranja, se não me engano essa é azul anil. O pessoal dos efeitos visuais está de parabéns. Fogos de artifícios explodem, em um céu azul escuro, brindado por estrelas de galáxias distantes, que não posso dizer todos os nomes. O espaço sempre me deixou perplexo, por sua grandiosidade infinita, duvido muito não existir vida lá fora, seria um grande desperdício de espaço, concorda? Os fogos clareiam os céus, devem fazer muito barulho, se fossem ouvidos na cidade silenciosa, as caixas de som amplificadas, abafam tudo ao meu redor. Pelo retorno em meu ouvido esquerdo, escuto o baixista fazendo uma levada, na escala de dó menor, significava que o refrão estava cada vez mais perto. Provavelmente não era apenas eu que adorava essa parte da música, o publico explode de baixo para cima, com as mãos levantadas para cima, como se saudassem a felicidade que habitam em todos os seres do universo. Quatro batidas no bumbo, é o aviso que o baterista vai entrar, com um meio rolo as baquetas começam a bater, passam da caixa, para o tom-tom, quando chegam aos pratos, o ritmo da música acelera, todos entram em um frenesi. Sabe de uma coisa? Mesmo depois de muito tempo, ainda me emociono nessa parte da canção. Nesse exato momento, o refrão começa:

O vestido que eu te dei foi rasgado.

O uniforme que eu comprei foi manchado.

E as flores do jardim,

foram pisoteadas.

E nossos quadros requisitados,

Para fazer....

Figuras bélicas do tempo antigo.

Acordes finais sendo dedilhados, vagarosamente chego ao momento que eu quero, adoro essas levadas finais. Um rolo de bateria corta o ritimo vagaroso e aos sons de pratos se encerra a música final.

A plateia vai ao delírio, gritos —Ele voltoooooou, ecoam pelo anfiteatro. Me sinto tão natural!

—Esse aqui é o meu lugar! Grito para o público, com o microfone já desligado. Uma explosão de palmas, que me arrepia todo o corpo, como se uma corrente elétrica, de milhões de kilowatts me atingisse em cheio, passando da sola de meus pés, subindo por minhas pernas, como formigas fugidas de seu formigueiro destruído por um cortador de grama, até chegar em meu rosto, que acabo de perceber...

Uma singela lágrima, me escorre pela face.

Descendo as escadas até meu camarim, dessa vez são rostos conhecidos, que me dão parabéns.

— Lindo show...

— Você estava demais!

— Sentimos saudades!

Pessoas que trabalham comigo desde sempre, que cuidam da maquiagem de todos envolvidos nas apresentações, seguranças que afastam o público ensandecido. A galera responsável pela passagem de som, os meninos que montam e desmontam os instrumentos. Faço um sinal de positivo para todos, já estavam acostumados, conhecem meu jeito vergonhoso fora dos palcos.

A porta do camarim está entreaberta e as luzes apagadas, passo por ela e as luzes se acendem de repente. Balões, palmas e risadas! Fizeram uma festa de boas vindas para mim. Me esforço para fazer cara de agradecido, na verdade até posso dizer que gostei... todos que estavam ali, são de meu total apreço, porém, algo me incomoda.

Um bipe lá no fundo, quase inaudível.

Alguém cobre meus olhos, com as palmas das mãos, mãos essas tão pequenas e suaves, um aroma de creme de amêndoas exala delas. Esse perfume me perturba ainda mais. Suavemente pego as delicada mãos, retiro de meu rosto e as beijo, juntando as duas em forma de prese. O rosto de minha amada noiva está irradiante, agora sim, tenho certeza, o bipe que me chama ao fundo, vem do despertador. Outra lágrima, dessa vez de tristeza, escorre por meu rosto. Tenho que acordar...

Desperto-me lentamente, a vontade de sair da cama continua a mesma, zero! Já se passaram alguns meses, desde que voltei para casa, se é que posso chamar assim, não reconheço mais nada ao meu redor, ou não quero me adaptar novamente, como diz meu psiquiatra. Com o passar do tempo, deixei de contar meus sonhos para ele, cansado das mesmas frases motivacionais, os mesmos remédios, a terapia em grupo, de certa forma me ajudou um pouco. Sabe? Ver pessoa em estado pior que o meu, até que me reconforta, porém pensar assim é errado, devemos todos nos ajudar a superar nosso conflitos internos. Está tudo em nossa cabeça, apenas alterações dos padrões normais de nossas neuroquímicas. Passada meia hora, consigo criar coragem e ir até o banheiro para lavar o rosto, o espelho reflete um rosto velho e cansado, quantos anos se passaram? Pergunto a mim mesmo sabendo a resposta, conservo grudado a porta da minha geladeira, um calendário, para marcar os meus dias liberto.

São quase dez horas da manhã, uma caminhada leve na praça deve ser ótima. Todavia, deve ser algum feriado municipal, pois o parque está lotado. Crianças, cachorros, casais apaixonados -pessoas, muitas pessoas- estão por toda a parte. Me sinto um pouco que desconfortável, mas decido ir mesmo assim. O controle da respiração me ajuda nesses momentos, não posso perder a calma em público-aspiro e inspiro repetidamente- abro os olhos e volto a minha leve corrida. Ao passar por um grupo de adolescentes, percebo alguns me olhando e cochichando enquanto um aponta o dedo para mim, apresso meus passos ainda mais. Um cachorro começa a latir atrás de mim...

BAQUE!

É o barulho da porta de metal que escuto se abrir a minha frente, um cachorro, deveria ser um rottweiler ou dobermann, só sei dizer que era grande. O latido é ensurdecedor de dentro de minha caixa, sim, me encontro dentro de uma caixa, sem saber ao certo quando é dia ou noite, já perdi a noção do tempo. Junto com o cachorro meu captor traz um prato de ração, que eu divido com o cão uma vez ao dia. No início me recusava a comer, agora já enxergando os ossos de minha costela, já me parece um banquete...

Pessoas batem em meu rosto, tentando me acordar, percebo que alguns repetem meu nome e outros parecem alarmados ligando para algum número de emergência.

— Moço, o senhor está se sentindo bem? Pergunta uma menina de uns que está com as mãos em meu rosto- cheira a amêndoas- isso me acalma um pouco.

— Acho que foi apenas uma insolação, não tenho saído muito de casa, ultimamente.

O rapaz que alguns minutos antes, havia apontado o dedo em minha direção, me ajuda a levantar da grama.

— Desculpa, senhor! O meu cachorro soltou da coleira e correu atrás do senhor! O garoto deveria não passar dos 20 anos de idade, por isso deve ter me reconhecido.

Comento que não havia percebido, que o sol deve ter me deixado indisposto, por isso devo ter tropeçado e caído na grama. Não devo ter passado muita confiança, no que contei para eles, insistiam em me oferecer ajuda, para me levar até minha casa.

— São apenas algumas quadras daqui. Comento enquanto vou me distanciando de toda aquela confusão.

Entre passos trôpegos e ruas agora desertas, essa parte da cidade sempre foi calma, atravesso prédios residenciais em direção a minha casa. A cada passo que dou, escuto ao longe outro, como se fossem ecos em uma caverna de qualquer país tropical. Me torno quase que um maratonista nesse momento, tenho que chegar em minha casa, antes que alguém me alcance, minha mente sabe que isso é o certo, meu coração dispara confirmando que não estou exagerando. Meus joelhos doloridos e arranhados pela queda de minutos atrás, me atrapalha um pouco. Os passos se aproximam cada vez mais, dessa vez não ecoam, estão mais rápidos que os meus, desconfio que ele está correndo, pelo barulho pesado, que o solado do seu sapato faz ao tocar a calçada marcada por meus passos. Meu perseguidor está em meu encalço, não haveria por que me assustar, já conheço o final dessa sensação, um baque na nuca e acordo em outra caixa apertada, comendo ração aos sons de latidos. Dobro a esquina do prédio onde moro, um sensação reconfortante de proteção imunda meu corpo. Quando coloco a mão na maçaneta, escuto u barulho atrás de mim, fecho os olhos esperando o que está por vir. O flash de uma câmera fotográfica, me desperta da minha paralisia gargonesca.

— O senhor pode dar uma declaração ao nosso jornal? Um homem alto e magro, com uma câmera fotográfica na mão e na outra um minigravador, desses de bolso.

Como que em um passe de mágica, como nas histórias de Alí Baba e seus quarentas ladrões, a porta de abre a minha frente.

—O senhor Adrian não tem nada a declarar! Enquanto me puxa rapidamente para dentro do corredor de acesso. Era Ricardo, meu antigo empresário. Abraço ele come se fosse um menino perdido dos pais em um parque temático, com o bater da porta atrás das minhas costas, ainda escuto sua última pergunta —O que dizer de sua noiva que ainda não foi achada? Isso me atinge como que uma marreta, minhas pernas cambaleiam e os olhos fecham lentamente.

Outro amanhecer difícil, ao olhar no relógio ao canto de minha cama, noto que já são oito da manhã, devo ter apagado realmente. Não me lembro se sonhei com alguma coisa nessa noite. A roupa de cama está encharcada de suor, devem ter sido pesadelos nessa noite. Um aroma de café fresco, toma conta da casa, torradas ao fundo. Deve ser me aniversario, há quanto tempo não ganhava café da manhã?

Ricardo está na cozinha, ele deve ter ficado a noite inteira em minha casa.

— Açúcar ou adoçante? Ele me pergunta sem olhar para mim, nos conhecemos há anos, ele sabe a resposta.

— Você me colocou na cama?

— Hoje você tem uma seção as 11 da manhã. Essa é sua resposta, para que não toquemos mais no assunto.

Comemos em silencio, sei que ultimamente venho magoando as pessoas ao meu redor com minha ausência, porém eles não entendem, como é difícil estar em locais estranhos. Como a cada rosto que me olha intrigado, a cada pessoas que cochicha ao ouvido de outra ou até os que me apontam nos lugares mais inusitados, como saber as reais intenções das pessoas?

Vamos de Uber até o consultório, ainda não havia renovado a minha carteira. Sento-me no banco atrás do motorista, minha estratégia de segurança, a qualquer sinal de acontecimentos fora do normal, um caminho diferente do sugerido pelo aplicativo, o carro acelerando demais, ligações telefônicas no meio da corrida- o sinto de segurança que corta seu tórax serviria como uma boa forca. Dessa vez tudo certo, uma corrida de 15 minutos que durou 16, vou dar quatro estrelas para ele, o carro tinha cheiro de ração para cachorro.

As portas de vidro transparente que davam acesso ao saguão de entrada passavam segurança aos paciente, muito bom poder ver que está lá dentro, antes mesmo de entrar. Apresento minha documentação a secretaria, quando a moça pede que espere sentado na sala ao lado, ouço meu nome ser chamado no corredor ao lado. Doutor Fagner era o nome dele, um senhor na casa dos 50. Um bom homem, de família de alta tradição médica, contava ele durante as seções. No dia de hoje trabalharíamos com os gatilhos do meu stress.

— O senhor pode sentar-se na cadeira ali o canto, enquanto a enfermeira coloca os aparelhos, que iram fornecer um biofeedback sobre a variabilidade da sua frequência cardíaca. O médico me aponta a poltrona ao canto, sem me olhar diretamente aos olhos, isso me passa um pouco de insegurança, mas se ele me curar do que sinto, não precisarei olhar para ele por muito mais tempo.

Após tudo estar em seu devido lugar, ele me pede que feche os olhos e conte sobre o dia em questão. A cena é a mesma que me persegue quanto estou fora de casa, pulando e rolando de um carro em movimento, os passos que me perseguem pela rua. O galpão abandonado que uso para me abrigar, a dor intensa que sinto em minha nuca e os latidos, os malditos lati....

Com os olhos ainda fechados, começo a ouvir os latidos ao meu lado, porém não quero abri-los, provavelmente iriei acordar em minha caixa e todo o sonho de liberdade não passou disso, apenas um sonho. Uma voz ao fundo ordena que abra os olhos, me nego, acho que até estou gritando. Me seguro na cadeira com todas as minhas forças, continuo gritando, que seja de pavor ou para inspirar medo a meus captores. Mão me agarram pelos ombros, enquanto continuam a me chamar, os cachorros, os malditos cachorros continuam a latir no fundo. Dessa vez uma voz feminina grita de outra direção. Os latidos sessam.

— Doutor! Eu falei que era um erro colocar esses latidos. Reconheço a voz, era a enfermeira que me conectou aos aparelhos. Ela está a me olhar horrorizada, aos baixar a cabeça, percebo que rasguei o estofado da poltrona com minhas próprias mãos, duas unhas estão dependuradas sujas de sangue.

—Eu precisava acionar os gatilhos que levam ele a seu maior nível de stress, ele precisa se lembrar do que realmente aconteceu.

— Mas não assim doutor, o senhor vai piorar o estado dele.

— Os delírios que esse rapaz sofre, são memorias falsas, que o cérebro implanta para substituir os momentos trágicos que ele passou. A enfermeira tenta retrucar, mas é interrompida novamente. — Somente quando ele lembrar de tudo que realmente aconteceu, poderá estar curado.

A sessão está encerrada, saio cansado caminhando em direção a saída. Essa rotina se repete duas vezes na semana, mesmo assim não percebo melhoras. O Uber não demora a chegar, repito minha mais nova tradição, sentando quieto atrás do motorista. Ele me olha pelo espelho retrovisor, com um largo sorriso de curiosidade, sei muito bem do que se trata. A corrida começa, poucos minutos depois, o radio do carro começa a tocar uma música- a minha música- poucos sabem que eu escrevi ela, quando pedi a mão de Lívia em noivado. O dia mais feliz da minha vida. Éramos amigos desde pequenos, quando comecei a cantar em pequenos bares da cidade, ela me acompanhava, do fundo da plateia pedia bis ao final do show. Confesso que se não fosse ela, não teria feito o sucesso estrondoso tão rapidamente, inundando as redes sociais com minhas apresentações, logo os programas musicais me chamavam aos montes. Levou algum tempo depois da fama, para que começássemos a namorar, até aquele dia não havia pensando no assunto, mas de tanto as revistas e blogs falarem a nosso respeito, comecei a enxergá-la com outros olhos.

Com que um despertar de um lindo sonho, peço para o motorista encerra a corrida ali mesmo, abro a porta na primeira oportunidade e saio para fora. Precisava de ar, respirar ar puro- aspira, expira e repete a sequência- aprendi essa técnica para me acalmar, nas aulas de ioga. Quantos lugares frequentei, após voltar para casa? Até na religião procurei abrigo seguro, uma ancora que pudesse me assegurar nesse mundo, uma bussola para me guiar, pois é assim me sinto, perdido em lembrança que preciso tanto esquecer. Me encontro em uma rua deserta, o motorista já devia ter ido embora há algum tempo. Não estou tão longe de casa, reconheço as placas comerciais grudadas nos muros de prédios abandonados. Se caminhasse mais uma meia hora, deveria chegar até em casa. Devagar e constante me dirijo em direção a civilização. Muros quebrados, pátios com a grama ata e queimada, tantos prédios abandonados que poderiam servir de cárceres para alguém. Essa ideia começa a tomar conta de minha mente, novamente um formigamento circula meu corpo, o coração querendo sair pela boca, com uma das mãos interrompo o que seria um grito, na verdade preciso das duas. Lagrimas escorrem por meus rosto, devem estar se espalhando como uma chuva de verão pelos campos, pois estou correndo, me sinto o próprio Bolts, em direção a linha de chegada, nada pode me parar.

Abro a porta desesperadamente, consigo entre lagrimas e soluço passar a chave pela fechadura, uma cadeira, procuro por qualquer cadeira, que possa servir para travar a porta ainda mais. Deveria me sentir seguro agora, estando em casa. Estaria eu, mentindo para mim mesmo? Vou até meu quarto e passo a chave, não uma, mas duas voltas. Ao lado da porta tenho uma cômoda, que arrasto e deixo bem a frente dela. Me ajoelho ao lado da cama, por algum tempo. Já anoiteceu, com os joelhos doloridos me deito em posição fetal. O choro já havia sessado já a algum tempo. Somente a sensação de impotência tomava meu coração. Quase adormecendo, uma única pergunta jaz nas profundezas de minha cabeça... Será para sempre assim?

Demetrius de Oliveira
Enviado por Demetrius de Oliveira em 12/01/2020
Código do texto: T6840078
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