Voltando Para Casa

O toque do vento era gostoso contra sua pele. A grama era um colchão macio. O céu estrelado era o melhor entretenimento que um dia poderia desejar. Deitado sobre o jardim de sua casa, Rafael sentiu o corpo relaxar sob o conforto de uma calma noite de verão. Tão tranquila que talvez adormecesse por ali mesmo, sob o som hipnotizante dos grilos, enquanto esperava sua esposa terminar de colocar Ana para dormir.

Aquela era uma noite especial. Rafael não entendia bem por quê, mas, naquele momento, soube que as coisas se resolviam. Enquanto respirava fundo, deliciando-se com o aroma doce das flores ao seu redor, sentia o peso que carregava nos ombros partir. Mesmo o medo arrebatador, aquele que espremia seu peito, tinha ido embora. Talvez fosse apenas o brilho encantador das estrelas, ou mesmo a saudade que sentia da mulher e da filha finalmente saciada, mas ele estava grato. Não sabia quanto tempo aquela paz duraria, jamais saberia, mas somente aquela curta felicidade fazia tudo valer a pena.

Ele deslizou os dedos sobre a terra, pouco se importando com a sujeira sob as unhas. Estava tão escura, tão macia, tão pegajosa. Tão diferente do que se lembrava. Estivera ele tanto tempo longe? Estava começando a se esquecer de sua própria casa? Quanto tempo levaria para que seu refúgio se tornasse nada mais que um ambiente desconhecido? Então sentiu o cheiro de grama molhada e soube que Amélia tinha regado o jardim. Sim, fazia sentido. Ela sempre fora tão cuidadosa com as plantas. Rafael tinha certeza de que, assim que se deitasse ao seu lado e sentisse o aroma forte das flores, começaria a falar sem parar sobre como estava orgulhosa de seu trabalho. E daquela vez, somente daquela vez, Rafael não se chatearia pelo tédio que aquele assunto lhe causava. Ouviria cada palavra.

Sim, porque aquela era uma noite especial. Tudo estava, finalmente, bem. Sua única preocupação era a de sentir o deslizar leve do vento sobre seus cabelos. Ele poderia descansar. Não havia perigo em deixar os pensamentos correrem livres e aleatórios, sem o foco do treinamento. Ele estava finalmente em casa.

Rafael sentiu os olhos pesados, mas não queria dormir. Não agora. A noite era uma criança. Queria pelo menos mais alguns minutos ao lado de sua mulher, sob a beleza das estrelas, para que pudesse voltar a ser romântico. Iria dizer como a amava e como era sortudo por ainda tê-la ao seu lado. Ele sabia que, com o trabalho que tinha, esperar não era fácil. Então, somente quando visse seu sorriso, quando a beijasse, adormeceria.

- Amélia! - Chamou ele, sem ouvir uma resposta. Mas sorriu porque não estava preocupado. Sorria porque sabia que ela viria.

Como sonhara em voltar para casa, deitar sobre a grama, e finalmente dormir tranquilamente. Os olhos de Rafael agora se fechavam, a visão turva borrando o brilho das estrelas. Elas pareciam brilhar mais que o normal, cegando-o com seu encanto, tão ofuscantes que o faziam piscar. Tão próximas que talvez o queimassem.

- Amélia? - Chamou ele, novamente. Estava com tanto sono que talvez só a visse no dia seguinte. - Amélia…?

Ele adormecia, sem culpa. Amanhã a veria. Levaria ela e Ana para um longo passeio, onde pudessem ficar juntos. No momento, só precisava descansar, logo voltaria para elas. Sentiu o corpo enfraquecer, a mente se esvaziar, soube que sua consciência se apagava. Ouviu chamarem por seu nome, repetidas vezes. Amélia se aproximava. Quis chamá-la, dizer para que se deitasse ao seu lado e observasse a beleza das estrelas, mas já adormecia. Talvez ela o acordasse.

Sentiu uma mão agarrar seu ombro e agitá-lo, mas, mesmo que não quisesse, a ignorou. O vento era tão gostoso, a grama era tão macia. Ele precisava dormir.

- Rafael! - disse a voz. - Rafael, acorde!

Ele sorriu, como há tempos não fazia, e sentiu as lágrimas começarem a escorrer. Ouvi-la mais uma vez era tão bom.

- Soldado abatido! - gritou a voz. - Santos foi atingido!

Rafael franziu o cenho, mas não abriu os olhos. O sono era bem vindo, fazia seu corpo descansar, e ele não o abandonaria. Amanhã falaria com Amélia. Agora, precisava dormir.

- Por favor, cara, não faça isso comigo. Não faça!

Ele ainda estava sorrindo quando seus braços penderam e tocaram a poça de sangue ao seu redor. Estava satisfeito porque aquilo que via era bem diferente do som das armas e do brilho aterrorizante dos lança-chamas. E, enquanto adormecia, sabia que havia voltado para casa.

ThemisMagalhães
Enviado por ThemisMagalhães em 28/10/2019
Reeditado em 28/10/2019
Código do texto: T6781545
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