Quando Marina Acordou

Marina acordou sonolenta.

A última coisa da qual se lembrava foi de estar brincando no balanço da escola, pedindo para a colega empurrar com mais força. Em algum momento ela ouviu um estalar de correntes e sentiu um impacto. Depois disso, tudo ficou escuro.

Agora voltava a si lentamente.

Em volta havia apenas neblina. O que era estranho, pois naquela época do ano o calor não dava trégua. Neblina era coisa do frio.

Sentou-se rodeada pela névoa. Levou a mão à parte de trás da cabeça. Sentia uma leve pressão ali.

“Ué, que lugar estranho.” Pensou em voz alta.

“Onde será que eu tô?”

Ficou em pé. Ainda usava o uniforme da escola. A camiseta branca com o brasão do colégio e o short azul feito com tecido liso e meio grosso. O tênis surrado apresentava as marcas de terra, o cabelo preso no alto da cabeça.

Olhou a sua volta, e nada.

Começou a pensar que talvez estivesse sonhando, então, lá longe, enxergou uma silhueta.

Sorriu, pois conhecia aquela forma alta e desengonçada. Correu em sua direção.

“Tato é você?”

A forma se deslocou em meio à névoa para olhar para Marina. Levantou seu braço esquelético e acenou para ela. Ao ir se aproximando, a forma ia ficando cada vez mais nítida: corpo curvado, braços tão longos que as mãos quase tocavam o chão, cabeça ovalada com um queixo pontiagudo. O sorriso débil exibia dentes pontudos e amarelado, os olhos estalados brilhavam como duas pequenas chamas alaranjadas.

“Oi Tato. O que cê tá fazendo aqui?”

“Esperando você.” Respondeu com o sussurro de sempre.

“Que lugar é esse?”

“Oras, é a nossa cidade.”

Marina franziu a testa estranhando a afirmação. Olhou em volta e viu a névoa começando a se dispersar e a revelar as formas do lugar. Aqui e acolá a menina começou a enxergar uma casa, uma árvore, alguns postes, calçadas.

“Nossa, mas tá tudo diferente, Tato.”

E realmente, estava. A cidade havia perdido suas cores. Tudo era cinza, preto e branco, iguais às páginas daqueles quadrinhos esquisitos que o irmão lia de trás para frente. Estavam na calçada de frente para sua escola, se erguendo meio torta por entre árvores pretas sem folhas.

Olhando para sua esquerda, Marina podia ver os prédios do centro da cidade. Durantes os recreios, as vezes, ela ficava muito tempo olhando para eles. O pai havia dito que ali funcionavam vários tipos de empresas, havia escritórios, consultórios de dentistas e centrais de atendimento, seja lá o que isso fosse. Todo dia alimentava a fantasia na qual quando se tornasse adulta, seria uma mulher alta, vestiria roupas chiques e trabalharia em um daqueles prédios altos.

Tato ficou ao seu lado enquanto se acostumava com o novo cenário. Já fazia um tempo que lhe fazia companhia. Chamava-o assim pois seu nome de verdade era muito difícil de falar. Havia o conhecido na noite após o enterro de sua mãe. Ele apareceu em seu quarto enquanto ela chorava. Teve medo no início. Talvez por causa dos dentes e dos dedos anormais, contudo a estranha criatura disse que sua mãe o havia mandado para cuidar dela, sussurrou algo em sua mente e ela dormiu. Na noite seguinte, fez a mesma coisa, e assim por diante, até a menina parar de chorar. Tato podia ser feio pra caramba, mas era uma amigo leal com quem conversava e dividia seus medos. Depois de o conhecer conseguia dormir de luz apagada, pois não estava mais sozinha. E ele a seguia por toda parte. Sempre silencioso, só falando dentro de sua cabeça, quando precisava.

“Tato, cadê todo mundo?”

“Eles estão onde sempre estiveram.”

“Como assim? Quer dizer que aqui não é lá?”

“É e não é. Aqui é lá, mas só algumas pessoas podem vir aqui.”

“Que tipo de pessoas.”

“Pessoas que estão sonhando, ou pessoas que não podem acordar.”

“Eu tô sonhando?”

“Não.”

“Hum…”

A menina deu um suspiro de desânimo. Apesar de ter o amigo ao seu lado, não gostava da sensação de vazio.

“A gente pode ir naqueles prédios?” Perguntou.

Tato afirmou com a cabeça e eles saíram em direção ao centro. Marina sentiu-se um pouco mais animada, pois poderia ver um prédio por dentro.

Foram pela calçada, mesmo não vendo nenhum carro por ali. Vez ou outra alguém passava por eles. Pessoas que se destacavam com suas cores naquele lugar cinzento. Passavam lentamente, com os olhos perdidos. Algumas felizes, outras chorando. Ninguém parecia percebê-los.

Caminharam por muito tempo até chegar em uma rua cheia de prédios. Eles se erguiam em direção a um céu cinza, como lâminas negras, algumas, inclusive, serrilhadas.

Marina, bastante empolgada, escolheu o mais alto para visitar.

Entraram em um saguão amplo. No centro havia uma mesa vazia e dois elevadores de cada lado. As paredes do lugar estavam descascando e apresentavam manchas que se se espalhavam em finas veias pálidas.

Com seu longo dedo, a criatura chamou o elevador, que desceu rangendo.

Entraram.

Havia apenas um botão e Marina ficou na ponta dos pés para apertá-lo.

A subida foi lenta, o elevador balançava e gemia. A menina sentiu um pouco de medo e segurou a mão ossuda do amigo. Ele nunca envolvia a mão dela de volta, mas deixava-a apertar seus dedos ressecados para sentir-se segura.

O elevador se abriu e tudo o que Marina, inicialmente, foi escuridão. Com o tempo, seus olhos se acostumaram e ela percebeu estar em um grande corredor. Havia portas de ambos os lados e, por debaixo de algumas delas, às vezes podia vislumbrar um pouquinho de luz.

“O que tem atrás dessas portas?” Perguntou ela.

Tato apenas acenou, indicando com a cabeça.

Abrindo a porta mais próxima, a menina viu uma sala ampla, iluminada por lâmpadas fracas, a luz de tom alaranjado tremeluzia fazendo as sombras dançarem. Havia várias fileiras de mesas com divisórias, sobre as quais haviam computadores e algo parecido com telefones. No fundo, havia uma moça sentada na última mesa. Ela usava fones com um microfone . Falava e gesticulava com desespero, no entanto Marina não conseguia entendê-la.

“Nossa, ela não parece feliz.” Comentou.

“Ela está tendo um pesadelo.” Respondeu Tato.

“Mas sem monstros?”

“É que, para os adultos, os monstros são diferentes.”

Algumas portas estavam fechadas, outras revelavam escritórios sem ninguém, ou espaços totalmente vazios. Em em um deles não havia nada mesmo. Não era apenas uma sala vazia, era O Nada, tanto que Tato teve de segurar a mão de Marina, para ela não cair no abismo escuro do esquecimento.

A menina já ficava chateada com o lugar sem graça, quando pensou ouvir algo.

“Ei, Tato, ouviu isso?”

“O que?”

“Acho que é um passarinho.”

Marina agarrou a mão do amigo e correu pelo corredor até encontrar uma porta maior, com um trinco pesado. Olhou para seu companheiro com olhos suplicantes, e ele a compreendeu e abriu a porta.

Ele sempre a compreendia, mesmo quando não lhe pedia coisas em voz alta, e sabia exatamente o que ela queria. Nunca negara nada ou reclamara de ter de fazer suas vontades, embora a garotinha nunca tivesse pedido nada impossível ou difícil. Era uma criança e, na maioria das vezes queria sorvete, ou sonhar com a mãe. Tato sempre a atendia, e por conhecer a mãe tão bem, podia recriá-la em sonhos doces e fantásticos.

Ao atravessar a porta, saíram na cobertura do prédio.

Alí o céu tinha cores: as nuvens branquinhas em um fundo azul brilhante. E lá estavam, os pássaros, pequenos e coloridos, cantando alegres.

Pela primeira vez, naquele estranho dia, Marina sentiu os raios de sol aquecendo-lhe a pele. Curiosa, correu até a extremidade do terraço, protegida com um pequeno muro.

“Tato, me levanta, eu quero ver.”

Pacientemente, a criatura foi até a menina e a ergueu, apoiando-a em seu ombro. Dali, ela pode ver um lugar que não sabia existir na cidade.

Além do prédio, havia um vale verdejante. Era possível enxergar grandes árvores e um rio correndo entre as colinas.

“Nossa, que bonito. Podemos ir lá?”

“Você pode.”

“Você não vai?

Ele balançou a cabeça.

“Por que?”

“Porque não posso.”

“Por que?”

Com um suspiro, colocou a menina no chão. Coçou a cabeça e desviou o olhar.

“É uma regra. Você não pode sair de casa depois que escurece, e eu não posso ir lá.”

“Mas não quero ir sozinha.”

Eles ficaram em silêncio.

Marina olhou para o vale sentindo o lugar a chamando por ela. Gostava muito da natureza, ou das imagens que via da natureza, de dentro do seu quarto. Sonhava em visitar florestas e riachos iguais aqueles dos programas de TV.

Lá em baixo poderia colocar seus pés na grama verde, mas queria seu amigo ao seu lado, mesmo pensando que ele, realmente, não tinha muito a ver com aquela paisagem.

Aquela criatura se encaixava mesmo naquele mundo cinza, ou dentro de uma noite eterna.

“Eu não sei… não posso ficar aqui com você?”

Os olhos dele se iluminaram, mas ao mesmo tempo sua expressão se tornou pesarosa.

“Você pode escolher ficar aqui, ou ir pra lá.”

“Não posso mais voltar pra casa?”

“Não.”

“E minha mãe, não posso ir encontrá-la?”

“Não.”

“Sabe onde ela está?”

“Sim!”

“Pode me levar até ela?”

“Não.”

Aquele lugar lindo, lá embaixo, esperava por ela com a promessa de aventuras, e Marina não sabia o que fazer, pois não poderia ser tão bom sem seu melhor amigo. Só porque era uma criatura feia, seu Tato não deveria ser proibido de ir a lugares bonitos. Não entendia como essas coisas funcionavam e começava a se frustrar.

Tato a colocou sentada sobre o muro. Ela balançou os pés enquanto percorria todo o horizonte com os seus olhos.

“E agora?” Perguntou.

O vento soprou, e com ele a voz de Tato:

“Obrigada por gostar de mim.”

Marina sentiu a mão ossuda em suas costas empurrá-la.

Quando achou que estava caindo, percebeu estar voando.

Nada ali poderia machucá-la, exceto a saudade.

Keila Fernandes
Enviado por Keila Fernandes em 08/06/2019
Código do texto: T6668150
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