SOBRE AMOR E DESTRUIÇÃO
Amanheceu um céu nublado, sem sinal do mais tímido raio de sol. Estava frio como teu corpo no caixão de madeira polida. Você sempre detestou dias frios. Vez ou outra sentia sobre minhas costas o pesar de olhos vestidos de preto. Sussurros jogados ao vento sem real intenção de chegar aos meus ouvidos. Sua mãe chorava escandalosa, como sempre fora, com os lábios finos curvados para baixo e um olhar odioso sobre mim por detrás das rugas cruéis que a vida deixou para trás. Vê-la atirada a terra, sem vida, - ainda que protegida pelo caixão - fez meu estômago embrulhar e a bile subir a garganta.
Meus pés me carregaram antes mesmo que meu cérebro possa processar o trajeto. Você não irá abrir a porta para mim. Não estará sentada na mesa com um olhar triste esperando pela minha volta, ou adormecida na poltrona em frente a TV. Não estará em pé em frente à porta, aguardando para fazer sua minuciosa inspeção pela minha roupa, procurando o cheiro de perfume barato ou no meu hálito qualquer rastro de álcool.
Faz frio aqui, isso permite que o corpo possa ser velado e enterrado em certo intervalo de tempo desde a hora da morte. Fazem quatro dias e essa é a primeira vez que boto os pés aqui.
Adentrei o velho apartamento, as escadas pareciam que a qualquer momento iriam ruir e virar um amontoado de pedregulhos, aquele papel de parede verde tristonho descascando. A chave ainda ficava embaixo do tapete. A porta de madeira escura foi aberta com dificuldade junto a um rangido que se assemelhava ao grito de agonia de qualquer animal pequeno. Os vizinhos pareciam estar num silêncio fúnebre, ouvia-se apenas o som dos ratos reunindo-se num cortejo na madeira do forro. Os vizinhos costumavam ser barulhentos, confesso que não sei se eram tão barulhentos quanto nós dois. O lugar estava uma bagunçado, como sempre foi. Tal como sua personalidade, uma eterna bagunça.
Restos do que um dia foram copos espalhados no chão da cozinha. Fotos espalhadas na sala. Meus livros foram cruelmente rasgados e pisoteados no corredor.
Não posso mentir que não hesitei alguns segundos antes de permitir que meus pés me guiasse pelo caminho tão conhecido do seu quarto. Da cama sobrou apenas o estrado, mas suas roupas ainda estavam no chão. O cheiro forte de produto de limpeza queimavam minhas narinas.
Foi ali, logo ali.
Onde fizemos amor diversas vezes. Onde tomamos café em manhãs preguiçosas e fizemos cócegas um no outro até um de nós chorar de tanto rir. Onde eu a deixei dormir sozinha por tantos dias, com os travesseiros consolando-a no choro incessável. Ali a encontraram sem vida, as mãos caídas na lateral do corpo e os olhos fechados como num sono profundo.
Garota boba. Sempre fazendo idiotices. Sempre tentando chamar minha atenção.
Em um eco repeti as palavras que você dirigiu a mim na ultima vez que a vi:“Não posso viver sem ti.” Saboreando cada som ao sair da minha garganta, tornado minha a sua fala, roubando suas palavras para mim.
Não posso viver sem ti. Você poderia viver. Teria sido uma vida melhor.
A culpa virou um peso insuportável, derrubando-me no chão, espremendo meu coração enquanto lutava para respirar e deixava que meus olhos finalmente transbordassem essas lágrimas amargas.
E o relógio acima da cama tiquetaqueava inquieto que e era tarde. Tarde demais para qualquer coisa. Foi apenas ao abrir os olhos que reparei que eles estiveram fechados por muito tempo. Pude ver logo a minha frente o Amor com suas vestes vermelho feito sangue e sua eterna companheira, a Destruição. O Amor dançava com toda a graça, era delicado, majestoso. E então vinha a Destruição. A devastadora Destruição. Inexorável, implacável. Com violência agarrava o Amor, brincava com ele em suas mãos. Rodopiava, o jogava para longe e depois o tomava novamente. Dançavam, chocavam-se para no fim se misturar. O Amor tornou-se a Destruição.
Amar é destruir.