O voo do bacurau
Parecia um voo corujão perfeitamente normal o daquela madrugada de sexta-feira, na rota Natal-Rio de Janeiro (Galeão) sem escalas. Todavia, antes de seguirmos para a aeronave (um Boeing 737-800), o comandante Torres cochichou algo ao ouvido de Soraya, a chefe de cabine, que a fez morder os lábios.
- Mas logo esse? - Indagou ela, apreensiva.
- É - respondeu ele, balançando a cabeça, muito sério.
Ficamos eu e Soraya à porta da aeronave, para receber os passageiros. O voo estava com menos da metade de sua capacidade total, apenas 77 passageiros, devidamente contados. Eles entraram, guardaram as bagagens e acomodaram-se; alguns caíram no sono quase que imediatamente. Meia hora após a decolagem, quando eu e as outras duas comissárias, Renata e Tânia, estávamos na "galley" frontal começando a arrumar o carrinho para servir o lanche, Soraya nos explicou em voz baixa sua conversa com o comandante:
- Não se assustem, mas ninguém na companhia gosta muito de voar neste Boeing à noite...
- Algum problema técnico? - Indaguei, preocupada.
- Não, Flávia. Mas várias colegas relataram ter visto uma comissária desconhecida andando pelo corredor, durante os voos noturnos.
- Credo! - Me benzi.
- Mas só... andando? - Indagou Renata. - Ela não fala nada... ou faz alguma outra coisa assustadora?
- Só andando - repetiu Soraya. - Parece que está contando os passageiros, ou vê se estão todos com os cintos atados... algo assim. Segue em direção à "galley" traseira... e desaparece.
- Quando formos, então, vamos todas juntas - sugeriu Tânia, a mais nova do grupo.
Olhamos simultaneamente para o corredor escuro, passageiros dormindo placidamente. Tudo parecia muito normal e tranquilo, nenhum vulto fantasmagórico visível.
- Quando as luzes se acenderem para servirmos o lanche, vamos todas nos sentir mais tranquilas - ponderei.
* * *
Eu e Renata começamos a recolher o lixo dos passageiros após o lanche servido. Na última fileira de assentos, na poltrona 32D, corredor, estava sentado um homem robusto, de meia idade, terno marrom, a quem eu me lembrava de ter recebido na entrada do avião. Ele me chamou.
- Aeromoça, será que você poderia me dar um copo d'água? A sua colega Mercedes disse que traria e não voltou.
- Perdão... comissária quem, senhor? - Indaguei, inclinando-me sobre ele.
- Mercedes. Loura, alta, rabo de cavalo... - descreveu.
Eu e Renata nos entreolhamos, assustadas, depois olhamos para a "galley" traseira, de onde havíamos saído. Não havia ninguém lá, com certeza.
- Você quer olhar nos banheiros? - Sussurrou Renata.
- Um momento - respondi, enquanto servia o passageiro. Ele bebeu o copo de um gole e me devolveu o recipiente vazio.
Renata e eu então voltamos para a "galley", obviamente deserta, e checamos os dois banheiros de ré. Vazios, como era de se esperar. Continuamos a recolher o lixo como se nada houvesse acontecido, embora nossas pernas estivessem trêmulas.
* * *
- Senhores passageiros, estaremos pousando em breve no aeroporto do Galeão, Rio de Janeiro. A temperatura local é de 18º C - anunciou alegremente o comandante Torres pelo sistema de som interno, para profundo alívio das comissárias agrupadas na "galley" frontal. Com as luzes da cabine acesas, Soraya avançou pelo corredor fazendo a contagem final. Nós a vimos seguir em direção aos banheiros e voltar depois, testa franzida, fazendo uma óbvia recontagem. Quando chegou até nós, disparou:
- Não há ninguém escondido nos banheiros, mas só contei 76 passageiros. Não embarcaram 77 em Natal?
- Eram 77, lembro bem. Quer que eu confira? - Prontifiquei-me.
- Vá, mas não demore - alertou Soraya.
Saí pelo corredor, olhando à esquerda e à direita. Quando cheguei à última fileira, só havia contado 76 passageiros. Foi então que me lembrei do passageiro da poltrona 32D, que me pedira água.
O assento estava vazio.
- [30-10-2018]