Não me ressuscite
Por volta das 10 da noite, a paciente, de cerca de 75 anos, chegou à emergência inconsciente, com um quadro agudo de pneumonia. Acompanhei sua entrada na UTI, deixei uma enfermeira cuidando dela, e fui falar com a família: uma filha de cerca de 50 anos, uma neta de 30 e um bisneto de pouco mais de 10 anos de idade.
- O quadro de dona Norma é grave - avisei. - Vamos fazer tudo o que estiver ao nosso alcance, mas é possível que ela não resista: está bem debilitada.
Aquilo não era uma acusação às duas mulheres, apenas uma constatação. Mas a filha acusou o golpe.
- Nós não temos plano de saúde... - disse ela em tom evasivo. - A mamãe tinha, mas quando começou a ficar muito caro... o senhor entende, doutor...
Eu entendia, claro. Prioridades.
- Caso seja necessário ressuscitar a paciente, qual é a orientação que me dão? Algumas pessoas, por várias razões, solicitam expressamente que não sejam reanimadas em caso de parada cardíaca.
Mãe e filha entreolharam-se.
- A vó falou alguma coisa sobre isso?
- Se falou, não me recordo - foi a resposta da mãe.
- Isso tem alguma implicação legal, doutor Soares? - Indagou a neta, me encarando.
- No Brasil, a ONR, Ordem de Não Reanimar, ainda não possui amparo legal, - expliquei - mas o hospital possui um formulário padronizado para ser preenchido pelo paciente ou por seus responsáveis legais, caso estes não desejem que os procedimentos sejam realizados. A decisão final e a responsabilidade de seguir ou não o pedido, competem à equipe médica, que avalia se ainda há alguma esperança de salvação ou se isso apenas prolongaria ainda mais o sofrimento do paciente.
- Queremos que vocês façam de tudo para manter mamãe viva - disse a filha prontamente.
- Pelo máximo de tempo possível - acrescentou a neta.
Prontamente, estendi o formulário e uma caneta para a filha.
- Marque um "X" neste campo, e assine, por favor.
Setenta e duas horas depois, novamente no meu turno, dona Norma morreu.
* * *
- Como foi, doutor? - Indagou a filha.
O trio estava novamente à minha frente: filha, neta, bisneto, todos parecendo calmos, apesar dos olhos vermelhos da mulher mais velha. Ajeitei os cabelos, desalinhados depois da minha luta inútil contra a morte, pouco antes.
- Dona Norma teve uma parada cardíaca... naturalmente, iniciamos de imediato a recuperação cardiopulmonar, e não havendo reação, usamos o desfribilador. Foram cerca de 40 minutos tentando trazer sua mãe de volta, mas lamentavelmente, ela se foi...
A filha enxugou uma lágrima no canto do olho. A neta parecia mais interessada em algo na tela do celular.
- A vó morreu depois da meia noite... - comentou finalmente. - Pelo menos, vamos poder ficar com o dinheiro da aposentadoria deste mês. Já caiu na conta.
- Não vamos ter que devolver pro governo? - Indagou a filha, preocupada.
- Não, esse é nosso. Depois que eu sacar, aí sim, levamos a certidão de óbito na agência do INSS - declarou, guardando o celular na bolsa.
- Vocês vão querer ver o corpo? - Indaguei, tentando conter minha indignação.
- No necrotério? - Indagou a neta com cara de asco.
- Não... ainda está na enfermaria.
- Vamos - disse a filha.
Comigo à frente, fomos até a enfermaria e eu puxei a cortina em frente ao leito da falecida, me colocando de lado para que a família entrasse. Percebi que havia algo errado quando ouvi a voz da filha gaguejar:
- Ma... mãe?
Só então olhei para o espaço delimitado por cortinas brancas, e vi o trio imóvel, estático, diante do leito, olhos arregalados. Os meus olhos também se arregalaram.
Dona Norma, que eu ali deixara morta, mais de uma hora atrás, estava placidamente sentada na maca, mãos nos joelhos, olhos bem abertos. E, como eu constatei, após respirar fundo, tomar coragem e me aproximar dela, continuava morta, bem morta.
- [24-10-2018]