Paz

Fabio chegou em casa, trazendo consigo uma sacola de compras. Não tinha dinheiro, então comprara apenas o necessário para este dia.

Entrou pela porta de trás, que dava acesso a cozinha, ela estava desarrumada, e os azulejos estavam antigos e muitos deles rachados com manchas horríveis de gordura.

Deixou as compras em cima da pia, que estava com pratos sujos acumulados de vários dias de refeição, repletos de baratas rondando e se alimentando dos restos de comida estragada.

Foi até o banheiro tomar um banho. Tirou a roupa e se dirigiu até o chuveiro, abriu a torneira e sentiu o jato de água gelada no corpo. A água estava suja, e dava até para tentar discutir se o que saía ali era mais lama ou água de fato. Mas Fabio não ligou para isso, era durante o banho que ele pensava na vida, nos muitos erros e nos poucos acertos dela, pensamentos estes que eram cada vez mais constantes nos últimos dias. Ficou parado sentindo as gotas caindo constantes em seu rosto, tentava olhar para o alto de olhos abertos mas era impedido pela água. Respirou fundo, mais uma vez veio a sua cabeça o sentimento que mais odiava. A lembrança.

Lembrava de dias em que ainda conseguia se divertir, conseguia compartilhar suas aventuras com alguem e como pouco a pouco tudo isso foi se perdendo. Lembrava que por sua ingenuidade fora enganado diversas vezes, traido de maneira fria, por amigos, que ele acreditava ferozmente que tinha. Lembrou-se das pessoas que amou. Daquela doce menina de pele macia como pêssego que se apaixonou perdidamente no primário, até a companheira de faculdade, com quem teve luxuriosas aventuras durante meses até ser trocado por alguem com muito mais dinheiro.

A muito tempo não sorria, ele sequer lembrava de o que era isso. Sempre negado pela família quando necessitava, descobriu tarde que não podia confiar em mais ninguém. Infelizmente sua vida sozinho não foi o que pode se chamar de sucesso. Todos os seus investimentos foram frustrados, foi demitido por diversas vezes, mais que se esforçasse nunca era o suficiente.

Finalmente saiu do banho, pegou uma toalha suja e úmida e se secou como podia, se enrolou nela e foi para a sala.

Ligou a televisão para ver as notícias da noite, deu umas pancadas nela para melhorar a imagem que estava com muita interferência. Sentou-se no sofá e observou o amontoado de pó branco e agulhas que estavam sobre a mesa, ao lado do bolo de contas não pagas.

Ficou encarando a imagem das drogas, e trêmulo, dividiu uma carreira do pó, enfiou a carcaça de uma caneta no nariz e inspirou fundo. A sensação por um instante era de alívio, esqueceu todos os problemas, se permitiu relaxar.

Ainda com o nariz sujo, e fungando inclinou a cabeça e viu seu reflexo no vidro da mesa. Via a sua imagem e percebeu que não se reconhecia mais, encarou por um tempo com um olhar vazio, quando foi tomado por um repentino ataque de fúria passou a mão com raiva e empurrou tudo o que estava sobre a mesa, o que só deixou o caminho livre para se encarar mais uma vez. Respirava de maneira pesada e tensa, e com um grito deu um murro com toda a força no vidro, o quebrando em milhares de pedaços e abrindo um profundo corte em seu punho.

Retirou a camisa e enrolou a mão com ela, rapidamente o vermelho do sangue tomou a cor do tecido.

Levantou-se cambaleando, ainda sobre o efeito alucinante das drogas. As pernas se embolaram e para se manter de pé se escorou na parede.

Observou mais uma vez a mão que ainda sangrava.

Percebia que não sentia dor, na verdade, não sentia nada.

A sensação vazia o tomou de um jeito que o silêncio do lugar solitário fosse quebrado apenas pelo som impreciso da televisão e por um soluço de choro.

Em poucos segundos o que era mais uma lamúria se tornou lágrimas descontroladas, Fabio tentava mas não conseguia parar. Gritava e socava a parede manchando ela de sangue. Se encostou nela ainda em lágrimas e escorregou até que estivesse sentado no chão.

Depois de algumas horas, finalmente conseguiu se recompor. Olhou para o relógio de parede e viu a hora que marcava.

22:00 horas.

Secou as lágrimas, e ainda com os olhos vermelhos se levantou com dificuldade.

"Está na hora", ele pensava.

Foi até seu guarda roupas e pegou sua melhor roupa, um conjunto social todo preto, que só havia usado uma vez, queria estar bem arrumado para quando viessem o buscar.

Se arrumou.

Foi até sua geladeira e pegou uma garrafa de vinho, o mais caro que seu pouco dinheiro poderia comprar e uma taça que já não usara a muito tempo. Botou a mão na bolsa de compras e tirou dela várias embalagens de remédios, dentre eles analgésicos pesados e antibióticos que na verdade não precisava.

Foi até o quarto.

Nele, girava na velocidade mínima um ventilador de teto aos pedaços.

Botou o vinho e os remédios na mesa de cabeceira, pegou de uma gaveta um pedaço de papel e uma caneta, escreveu alguma coisa e deixou de lado.

Respirou fundo e olhou envolta de si mais uma vez, meio que para se lembrar de sua situação.

Estava preparado.

Retirou cada um dos comprimidos e os engoliu um a um, sempre seguido de uma taça de vinho.

Quando terminou todos os comprimidos se deitou na cama e ficou olhando para o teto de pintura inacabada por bastante tempo.

Lembrou de tudo mais uma vez. Sentiu seu peito arder, sua respiração ficava cada vez mais pesada.

Piscava mais e mais devagar, os olhos ficavam pesados.

Depois de uma hora deitado Fabio conseguiu olhar lentamente para o lado, só para avistar alguem entrando em seu quarto. Era uma mulher, linda de pele pálida e vestido preto, ela carregava em sua mão uma vela e as chamas dela trepidavam fracas. Ela se aproximou lentamente da cama até estar do lado dela, olhando fixamente para o homem ali deitado.

Eles se encaravam por um tempo e em um suspiro sereno Fabio se permitiu sorrir, o primeiro sorriso em tempos.

A vela se apagou.

Fabio mandou um olhar vazio para o teto e a mulher encostou suavemente seus lábios aos dele.

Ele adormeceu sorrindo, e assim permaneceria agora eternamente.

Em sua mesa de cabeceira se encontrava o papel que ele havia escrito: " Agora estou feliz "