Pirata, adieu
Ele apareceu lá em casa vendendo mangas. Das pequis, pequeninhas, ovaladas, macias, firmes e sem linhas, e que tem um sabor difícil de ser superado. E varia muito a denominação desse tipo de manga pelo Brasil afora, onde aflora. Sites internéticos referem-na como manga ubá, e vai ver que dela muito chupou, antes de ir para o Rio, o menino Ari, o Barroso.
E o Pirata, ali naqueles meados dos anos 60, ainda rapazinho, já fazia parte de uma segunda geração de manguistas frequentes em nossas bandas. Sucedia o Zé Vovô, um quase vizinho, do Beco dos Canudos, rua paralela ao nosso então Beco-sem-Saída, vendedor da insípida e enfiapada manga comum.
Sem as preocupações do Zé Vovô, de catar pregos, latinhas, fios de arame enquanto vendia sua produção, o Pirata vinha de mais longe, da Penha, onde está o marco original da fundação de Pitangui, uma capelinha devotada a Santo Antônio, que compete com Nossa Senhora nos fervores e nas orações dos fiéis, com vantagem para o primeiro na arrecadação de promessas que lhe fazem por sua intercessão junto ao Altíssimo, sobretudo nas graças do matrimônio. Cumpre registrar, também, que no largo da referida igrejinha encontra-se uma casa colonial cuja ereção, atribui-se ao bandeirante Borba Gato. Habitada e reformada por gerações sucessivas, fica difícil a comprovação da assertiva. Mas pelo primor de seu alinhamento na praça, e de sua solidez, o desbravador de nossas matas e subsolo merece palmas. Resta uma consulta aos antigos registros de IPTU da época...para confirmação.
Mas retornemos ao Pirata que, por essa alcunha, só era conhecido por nós mesmos, seus contemporâneos e fregueses inconspícuos do Beco-sem-Saída: assim o designamos à primeira visita que nos fez, exibindo seu cobiçado produto - que poderia muito bem ter sido colhido no quintal de Borba Gato, ou alhures, na vizinhança, pois na dita Penha, para o ouro fecunda, igualmente, manga abunda - uma das pálpebras superiores do garoto, caída que era, associava-o infalivelmente a personagens de revistinhas em quadrinhos que conhecíamos, no ramo da pirataria. As mangas, contudo, ele, o José Antônio Alves, laborioso e honesto, garantia que eram de idônea procedência.
Meu reencontro com o José Antônio deu-se um par de décadas depois, numa quermesse na aprazível e histórica pracinha da Penha, quando ele então já havia diversificado seu negócio com a venda de bilhetes da sorte. Lembra-me que lhe perguntei se sua loteria, pirata não seria, e ele, na reação, branda para um lobo do mar de sua estirpe, disse-me apenas que era garantida. De procedência e de sorte. Não crendo muito na primeira, deixei de usufruir das benesses propiciadas pela segunda.
Em referências posteriores, que percolam um período fecundo das três últimas décadas, vi José Antônio pouquíssimas vezes em seu trajeto costumeiro em Pitangui. Havia-se convertido em Zé do Radinho, a par de tudo o que se passava no mundo, compensando amplamente a escolaridade que não pudera alcançar, e desenvolvendo um trabalho nobre e, embora menos rentável que seu comércio, muito mais gratificante de liderança comunitária.
Há coisa de um ano, já de posse precoce de uma vara que lhe servia de bengala, e para espantar algum cachorro - ele deveria, então, estar apenas entrado na sétima década de sua existência - saudava a todos na sua bonomia e busca dum ou dois dedos de prosa, antes de subir o morro de volta para sua casa.
Não consta que tenha-se casado ou formado descendência, ao que eu saiba. Mas tenho toda a certeza de que foi bem além, bem pra riba, da morraria da Penha.