Coma
Eu poderia ouvir tudo, eu poderia até falar, se bem que nem mesmo o vácuo me entendia, mas inquietava-me o facto de nunca ter conseguido identificar o cheiro do teu perfume.
A morte já havia sido anunciada pelos bairros todos, porém não passava duma balela, pois eu tinha os olhos bem abertos. Apenas a visão insuficiente havia piorado. Passei a ver tudo ainda mais escuro, inclusive o suposto céu. Como se diz ser branco como neve e eu não poderia enxergar nada disso, só via uma luz preta que me dava a certeza de que a retina não estava morta, sabia então que ainda respirava. Mas ninguém o poderia sentir. Os choros engraçados e aberrantes não deixavam ouvido nenhum cheirar o batimento do meu coração. Sou desde cedo tão franzino, e então, deve ser por causa disso que na pequena recaída que tive o mais sensato foi ser declarado como morto. Como puderam eles se esquecer de que eu não morro fácil? E mesmo que já me tivesse ido embora, eu ainda estaria aí, pois o bom filho à casa sempre evidenciou o seu retorno.
Morto como estava, não poderia levantar-me de repente e dizer a todos para calarem as bocas. Digamos que eu estava a dormir, pensando até que pelo menos uma vez na vida teria um sono decente. Sem barulho de aparelhagens, sem pessoas a discutir por motivos diarréicos ou mulheres a mandarem-se pro chão, como se isso resolvesse alguma coisa. Era chato poder ouvir do caixão aquela conversa fiada entre os tios que tentavam acertar o dia do meu enterro. Os meus amigos não se queriam deixar amolgar pela tristeza e então decidiram lembrar apenas os momentos mais altos que vivemos juntos. Mas isso teve um resultado completamente contrário, pois as reminiscências surgiam com ardor, como se uma cebola estivesse a ser abatida, ali mesmo onde dever-se-ia estar a jogar cartas.
Eu não estava morto, raios! Antes irritado com a presença de certas pessoas no "tambi". Pessoas cara-de-pau, passam suas vidas também moribundas a rezar que estejas imóvel mais cedo, e quando jazes, não hesitam em querer conhecer o teu novo leito para certificarem-se de que a missão foi cumprida. Algures uns primos meus, dos mais estudados, pensavam no que escrever pro meu elogio fúnebre. Eu gostaria que fossem almas mais próximas, pessoas com quem sorri e chorei, derramei até lágrimas de crocodilo só para gozar com as emoções. Estas pessoas tiraram algo de mim: não conseguirem fazer nada de jeito quando sob efeito de drogas sentimentais. Eu teria feito exactamente o mesmo por elas. Não consigo poemar ou prosar com perfeição sobre dores recentes.
Eu sabia que não estava morto, ou pelo menos desconfiava, porque tinha os olhos clínicos, apesar de... Sei lá. Aquilo não era o hades, não era o céu nem mesmo o corredor que dá acesso ao inferno. Eu estava em casa, enquanto os próximos e distantes, parentes e inimigos "quelelavam", uns de verdade e outros nem pensar, a minha ida. Todos diziam que havia partido cedo demais. Mas eu, frustrado como sempre fui, até que amaria a ideia de deixar de amar, sofrer, receber ralhetes e injustiças todos os dias, como se bicos da cara alimentassem uma alma despelada, um difunto adiado.
"Estou livre", pensaria, se a morte tivesse sido concretizada. Rocha mas é. Ainda faltavam-me mais uns tantos séculos de agonia. E como ouvia tudo mas sem se poder pôr em pé, dei pela entrada dela na sala onde meu corpo recebia cultos, entre aspas. Foi só ela ter pronunciado o meu nome arrasada para eu acordar do coma.
"-Wilson, tu não estás morto!"
A afirmação foi o chamado, mas a praga era forte. Não era a chance de ir ter consigo, decerto. Sairia do caixão à uma velocidade lixada e beijá-la-ia. Uma reconciliação imediata. Um beijo imperioso e essa galga de felicidade solitária já não faria mais sentido.
Eu deveria ter rasgado a indumentária do ego e correr atrás dela. Não o fiz. Morri de verdade. Aperaltei-me com a farda dos finados e doei-me para um cemitério qualquer, e na cova meu orgulho seguiu caminho.