Entre frutos e sombras

Uma mordida e eu sabia que meu coração iria parar. Somente um segundo e um último sabor. Em seu rosto refletida a cor, a maligna cor que emanava daquelas paredes.

Tons e tons de verde, e minha respiração se elevava quase querendo se extinguir. A ânsia de acabar com tudo era tamanha que meu coração quase que parara por conta própria.

Lembranças amargas me faziam desejar cada vez mais aquele veneno e o brilho do rosto à minha frente, de ansiedade, de suor, de medo talvez, apreensivo. Sujo de fuligem e com expressão cansada.

Ao contrário do meu, lustroso, branco e corado, sem uma ruga sequer. Porém com um brilho fosco nos olhos, de desesperança... A velha devia ser mais viva por dentro do que eu.

- Apresse-se criança! - berrou com seu hálito podre. Eu não pude me mover de tamanha dor que me tomava, parecia que o veneno iria aliviar meu pesar. Ela deu meia volta e deixou-me trancada a pensar, com a solução em uma singela mordida.

Teria meu medo me feito refém de uma vida repleta de falhas, de vazios inexplicáveis? A dor de não ter pelo que sentir era maior do que tudo.

Com a luz da lua a tocar minhas mãos fechei os olhos na esperança de que me viesse alguma ideia. Mas só enxergava o negro dentro de minha alma que a cada dia me consumia.

Ele era a droga da alegria encarnada... e eu viciei. Ah! Como viciei! E aquilo me destruiu por dentro até não haver mais um pingo de luz em meu ser que pudesse me reerguer.

E eu assisti minha própria destruição, minha anulação diante de um sorriso esplêndido que me cativava a cada mover de músculo para se abrir mais e mais e soltar uma gargalhada suave:

- Minha querida!

Mentiras nos cercaram por todos os lados e minha personalidade foi moldando-se aos seus atos. Fui me degenerando a cada sorriso seu, a cada toque em minhas mãos...

Mãos que agora brotavam espinhos, que sangravam e tremiam. Meu rosto se desfazia e derretia num calor agonizante. Minha pele como cera escorria e os músculos continuavam pulsando descobertos e...

- Arrghh!

A vela me queimava e eu havia adormecido, minhas mãos vermelhas e quentes com formações de bolhas e o fruto caído ao meu lado. Os lábios se encontravam dormentes e mal conseguia produzir algum ruído.

A velha sentou-se em frente a mim fitando-me e sem uma palavra sequer me deixava perturbada. E eu puxava o ar mas meus pulmões pareciam paralisados, me arrastei até a fruta e encontrei-a intacta... meus olhos arregalavam-se e minhas unhas cravavam no chão de pedra deixando um rastro de sangue.

- Ah criança!

Eu me debatia e minhas veias já estavam saltadas, não tirava os olhos dos olhos da velha que tinha um sorriso engraçado no rosto. Apertei meu pescoço, tentei pedir ajuda com o olhar e ela nem uma palavra dizia com seu sorriso estático.

Fui desistindo a cada tilintar que ouvia em minha mente e a cada escuridão que me passava diante dos olhos. O fruto foi apanhado pela velha que girava-o como que inspecionando. Fechou a cara encarando-me com a respiração escassa.

Eu encarava o fruto intacto e ela por fim disse:

- Este seria seu pior mal - girando a maçã vermelha lustrosa com uma camada esverdeada. - Criança, você está se afogando em sua própria escuridão, na aura negra que consome sua alma. É tarde para tentar lutar é tarde para acordar... O fruto apenas lhe daria uma morte mais branda.

Me revirei para ouvi-la melhor, ainda caída no chão.

- Não, não vai morrer, não se preocupe. apenas ficará presa no seu próprio corpo, como um boneco que não serve mais para brinquedo. Não lutou um pouco sequer contra seu desejo e se jogou no mal que a encantava. Seus pensamentos continuarão em sua cabeça mais ávidos e mais detalhados, viverá eternamente suas lembranças mais ruins e perturbadoras. Agora já não mais se move mas deixarei a maçã ao seu lado...

-... para que se lembre que até mesmo o veneno pode se tornar doce perto do que guarda dentro de si.

13/06/2013

*Conto baseado na história de Branca de Neve.

Bi Andrade
Enviado por Bi Andrade em 18/02/2018
Reeditado em 18/02/2018
Código do texto: T6257371
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