O Mortuário
O meu coração foi-se junto com aquele que um dia ousou amar. Foi embora no último crepúsculo, ainda com o aroma das flores recém desabrochadas desse jardim. Sentei-me ali mesmo ao pé do banco de madeira onde costumávamos perpetuar nossas promessas. Por que me deixaste tão cedo? Por que não lutou por sua vida, já que prometeu nunca me abandonar? A febre maldita do século o tomou de mim, ela ceifou vidas e abandonou as almas jovens condenando-os a vagar pela eternidade sem rumo.
- William! Sussurrei aos ventos.
- William, repeti agora com os olhos fechados. Ninguém respondia.
- William, ouvi longe. Deve ser o eco zombando da minha tristeza.
– Some-te daqui tolo ecoar, vá repetir outras lamúrias. Deixa-me aqui, não venha bisbilhotar, já basta a companhia desses corvos. Deixem-me na santa paz!
E assim entardecia, os corvos crocitavam da minha agonia; um, dois, três, eram vários em ninhada, pareciam festejar, e o motivo da celebração somente a mim não cabia conhecer.
O Sabbath maldito dos pássaros já me incendiava os tímpanos, o corvejar passou a me confundir os sentidos e na sanidade já não se podia mais confiar. Os corvos rodeavam, girando, girando com seus olhos vermelhos reluzentes. Eu, abanava os braços para espantá-los, mas em uma confusa visão, os endiabrados assistiam lá de cima todo o meu desespero.
Tentei fugir das gargalhadas demoníacas que vinham do meio da escuridão, mas meu corpo trêmulo parecia não sair do lugar, foi assim que cai na maciez daquela terra negra... restou deitar ali e ficar no chão para silenciar os gritos das aves em festa... e como uma prece, eu repetia...
- William...
Mas naquele instante, somente a terra negra para confortar as lágrimas. No auge da minha exaltação, os pássaros fúnebres cessaram a cantoria. Foi assim que o vi chegar...
- Clarice! Não chore mais, eu te peço...
Com os olhos fechados, eu sorria para o céu, naquela ingenuidade morbidamente romântica, sorria sem mesmo ver a razão da minha alegria, e abrindo e fechando os braços como se tivesse asas naquela terra negra. Ao olhar para o alto notei que os malditos corvos já haviam ido embora. “Graças ao bom Deus”, agradeci! Eu alucinava e acreditava na minha própria loucura...
Ao despertar em um leito rígido, coberto de flores e folhas secas, o sono atemporal ao menos serviu para curar o tormento dessa solidão, em troca, o destino contemplou-me com outros questionamentos existenciais, o que punha em tese a sobriedade de minha sanidade mental.
- Por todos os santos! Quanto tempo fiquei aqui? Perguntei ao tolo ecoar. Pobre ecoar! Sua natureza estava destinada a repetir sempre solitário, palavras em qualquer lugar vazio, sem ninguém, sem nada.
Eu olhava para todos os lados, movimentando a cabeça como um recém-nascido. A sensação de leveza estava intrínseca aos meus movimentos perdidos. Questionava a realidade daqueles acontecimentos, depois duvidei da integridade do meu sentido auditivo, que notou uma voz um tanto familiar e a voz chamava meu nome.
- William? Pensei consigo mesma.
- São muitos os questionamentos para esse primeiro dia. A eternidade é nossa companheira e a quietude da morte o nosso repouso, dizia a voz.
Um vulto negro cruzou a minha frente como uma brincadeira de esconde-esconde... a voz parecia vir de trás, olhei para lá e na meia penumbra, uma face desprovida de tecidos, músculos e vasos sanguíneos, me observava fixamente com seus dois glóbulos oculares vazios e sujos de lama.
Subitamente, na tentativa de gritar, salivava na agonia de não ouvir a minha própria voz, o meu próprio grito. E o desespero mudo, passou a tirar a razão que ainda restava. Aquela face sem vida estava na minha frente, no reflexo da poça d'água esquecida da chuva, aquela face, era o meu próprio reflexo, acusando-me de ingratidão por ter tido uma vida, um presente divino, a saúde que todos os enfermos condenados à morte tanto pediam à Deus, mas eu neguei tudo por um amor que havia partido para nunca mais voltar...
Por hoje, restou o tolo ecoar, perecendo a minha loucura neste lugar, assombrando a todos que aqui vem passar.