ANJINHO

ANJINHO

Quando ela nasceu nenhuma trombeta soou. Os anjos dormiam.

Os céus estirados no breu rascunhavam a manhã. Tudo dormia. Pássaros e galinhas. Pessoas e bichos. Aranhas teciam seus crochês e os enfeitavam com gotículas de orvalho. E dormiam à espreita.

O sono de tudo e de todos era azul escuro. Tão escuro que parecia preto. Debaixo dessa escuridão de dar medo um grito agudíssimo desmentiu o silêncio noturno. Prolongado. Parecia choro. Mas não era.

Jovelino, tratador de cavalos, de um salto se livrou da coberta de retalhos. Parecia que ouvira um relincho. Mas sabia que não era. Chacoalhou a mulher que ainda sonhava com o vestido de popelina rosa. Promessa do marido para o dia do seu aniversário.

Alguém está chegando neste mundo. Nossa Senhora do Bom Parto que ajude. Mas o grito feria todos os ouvidos. E ninguém parecia escutar.

Jovelino sentia o peso da terra revirando aquele grito. Resolveu seguir o som da maternidade. Por mais que vasculhasse. Por mais que espremesse os olhos para ver. Não conseguia atinar de onde vinha. A luz fraca da lanterna mal alumiava. De repente um gemido feito fio de chuva…

Ali estavam as duas. A mãe banhada em suor aninhava a menina banhada em sangue. Num filete de voz implorou. Tem que batizar meu anjinho. Estou indo embora. E num derradeiro suspiro fechou os olhos. E abriu os braços.

Jovelino e a mulher fizeram o sinal da cruz. Severiana recolheu a criança que quase não respirava. Enrolou no chale. Vai se chamar Maria das Dores. Eu te batizo em nome do Pai. Do Filho. E do Espírito Santo. Amém!

De lá de cima uma nuvem branquinha espiava tudo. Tinha o formato de um anjo. E ia se desfazendo… Se desfazendo…

Pela manhã Jovelino e Severiana retornaram para casa. Deixaram atrás de si duas cruzes. Das duas Marias. Maria dos Anjos. E Maria das Dores.

Mírian Cerqueira Leite

Mileite
Enviado por Mileite em 07/06/2017
Código do texto: T6021439
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