INSTANTE IMPIEDOSO

INSTANTE IMPIEDOSO

Sentou-se sem respostas em frente à mesa.

- Qual seu nome, por favor?

Seu nome eram as iniciais de perguntas embaralhadas. A lembrança de si remexia-se sob os escombros do esquecimento. Tormentos de sombras apenas. Era um ser prolongado nas verticais dos olhares alheios.

Os lábios não se tocavam. E a boca permanecia inquieta na impotência de ter que dizer quem ela era. E ela só sabia que ressurgira de um caos qualquer.

Pousou a mão sobre a mesa nervosa de papéis. Os sentidos crepitavam respirações apressadas. Era sempre assim quando perguntavam no que ela queria trabalhar.

Auxiliar de cozinha, não! Isso já era página lida. Experiência escravizante. Mas então o que poderia ser? Não sabia.

Faxina. Ah! não tinha jeito pra isso. Suas mãos nunca se entendiam. Pareciam ter vida própria. E tudo derrubavam. Quebravam. Destruíam. Mãos dementes!

A mãe profetizara desde criança que jamais daria boa coisa. E a profecia materna se realizava. Ali, respirava suas ruínas. Ninguém poderia saber daquele segredo. E o guardava no mais invisível de si.

Seria ela um projeto inacabado pelos deuses? Desistiram dela?

A pele do rosto se transformava num braseiro. Eram chamas internas queimando quereres. Nem as lágrimas conseguiam chegar até os olhos. Evaporavam fervidas de vazio. A pele toda era de todos os dias desnascidos. Como células recorrentemente mortas.

A moça do cadastro insistia nas perguntas irrespondíveis.

- Sinto muito, senhora, não posso ajudá-la. Se a senhora não sabe no que quer trabalhar, como posso encaminhar seu currículo?

Mordiscava a língua na intenção de acordar a fala certa.

- Qualquer coisa serve, moça. Não posso ficar desempregada a vida toda. Tenho que pagar o aluguel. Se não pagar, a dona da casa me põe na rua. E… não tenho ninguém pra me ajudar.

Com um suspiro misturado de enfado e compaixão a atendente do Centro de Apoio ao Trabalhador chama a próxima senha.

Extinta de si, Maria Dalva recolhe seu infortúnio para dentro da mochila surrada de insucessos.

Vai pela avenida tumultuada de carros, mendigos e vagabundos. Ambulantes com suas promessas de vendas, atropelam calçadas e passantes. Alcança as escadarias do metrô. Precisa voltar logo antes que o sol se esconda atrás das casas. Passa a catraca e na plataforma espera o trem. Pensamentos passam velozes quando o celular toca. Abre a mochila. As mesmas mãos dementes se confundem e os papéis, com seu currículo de vida, caem. Se espalham sobre os trilhos. Maria Dalva não pensa. Se apressa em catá-los. E o trem passa.

Mírian Cerqueira Leite

Mileite
Enviado por Mileite em 06/06/2017
Código do texto: T6020340
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