[ M & L ] Convidados
Marvin e Lydia são personagens criados por mim baseados em ideias trocadas com minha querida irmã de alma Larissa Prado ( http://www.recantodasletras.com.br/autores/larispra ) Esta coletânea de contos pode se repetir em diversos universos onde o casal de irmãos excêntricos passam por diferentes situações, sejam como membros de uma banda de rock, médicos legistas ou exorcistas. Também há de se repetir o mesmo universo em outros contos, dependendo da inspiração e ideias trabalhadas.
Boa leitura.
"A vida é um sonho e a morte é o despertar." - Arthur Schopenhauer.
I
Era uma festa de despedida de solteiro de um dos colegas de escola. “Colega” é a palavra correta para descrever aquele do qual se convive mas não há afinidade, nem intimidade, ou obrigatoriamente uma troca de palavra. Apenas a convivência fria de respeito mútuo e saudações murmuradas, talvez o aperto de mão para parabenizar alguma situação ou aplausos quando a apresentação no powerpoint for boa o suficiente. Ninguém paga um cinema, ou telefona, senta para emprestar livros ou se lembra em certas ocasiões do dia, tudo muito calculado e eventual para quiçá existir a oportunidade de trocar números de telefone. E caso for trocado, é por causa de trabalho, sempre o trabalho, ou a escola, sempre a escola, automatizado como a cafeteira que se desliga sem nem ao menos perceber antes de sair porta afora.
A vida de Marvin e Lydia, portanto, era cercada de colegas.
Viviam no Maine, uma cidade que marcou suas carreiras como médicos legistas. Os dois. Afinal, vindos da família Brightlace, não podiam escolher outra carreira já que o clã era composto de médicos legistas por muitos anos, a enorme casa que moravam de três andares obscuros de mogno foi construída pelo resultado de tal trabalho. Se algum membro da família pensasse em seguir outra carreira, era livre para tal, mas os comentários da cidade diziam: “Um Brightlace escolher administração ou engenharia? Jamais. Eles não se dariam bem em escritórios normais sem o cheiro do formol.” Se isso magoava a esposa de Nathaniel Brightlace, mãe do casal de irmãos, nunca sequer triscou nas suas inabaláveis estruturas grossas de armadura, posicionadas no corpo inteiro para evitar o tremelique nos membros. Eram fortes aqueles irmãos, uma torre de babel que jamais caiu.
Pelo menos era isso que o Maine acreditava.
II
-- Terrence vai se casar.
Marvin ergueu o olhar do corpo, os cabelos ondulados impedindo uma visão melhor ao par de íris negras e cansadas. Sempre cansadas. O par de íris que mais abaixo das bolsas era cercado de olheiras profundas, não muito escuras, mas perceptível como um rastro de mancha na pele mui pálida. Pela expressão, Lydia percebeu que o par de sobrancelhas se franziu um pouco antes de relaxar, Marvin a fitou como estivesse olhando para um relatório do Xerife sobre a morte misteriosa de alguém e o prazo de entregar o laudo no dia seguinte. Era cansaço simplesmente, uma falta de ânimo que não a estremeceu, mas tocou profundamente.
-- Ah, é? -- Ele perguntou, não por educação, mas surpresa -- Como é que você sabe, irmã?
-- Eu faço parte daquele grupo de escola no whattsa, lembra? Aquele que o professor nos colocou. -- Lydia colocou uma mecha dos próprios cabelos lisos para atrás da orelha. Diferente dos de Marvin, as madeixas eram lisas, mas igualmente escuras e cortadas à uma moda levemente antiga, como os de Pamela Courson.
-- E quando ele vai casar?
-- Semana que vem. Quero dizer, estava marcado há meses mas ninguém nos chamou. A esposa dele, portanto, se sentiu impelida a convidar todos os colegas do ensino médio como prova que se importa com suas amizades. -- Ela colocou o celular na mesa perto do corpo inerte explorado por Marvin -- Mas preste atenção, irmão, ela não só nos convidou para o Casamento mas para a despedida de solteiro dele.
-- Despedida de solteiro. -- Marvin repetiu, inclinando a cabeça para o lado -- O que seria isso?
-- Não sei, parece entediante.
-- Verdade. Bem, se o Xerife não trouxer ninguém, nós vamos à despedida de solteiro.
-- Mas você disse que é entediante.
-- Nunca é entediante explorá-los vivos. -- Ele sorriu e ela também, cúmplice ao ponto de vista. Todavia, um rombo de análise veio à Lydia depois daquele sorriso e enquanto retirava rastros de terra das unhas da vítima - um homem de 30 anos assassinado a sangue frio e desovado em um lago - pensou que era sempre constrangedor ver colegas de escola ou alguém fora do círculo forense do Maine. Ela pensou que talvez não fosse uma boa ideia ver Terrence e sua noiva, assim como aquelas pessoas das quais tanto o degradaram e excluíram, inclusive os professores.
Havia consequências em ser médico legista e uma delas é que se conhecia tudo sobre a morte e tão pouco sobre a vida.
III
Lydia era quatro anos mais velha que Marvin, então, ele tinha vinte e três e ela vinte e sete. O Xerife que tinha filhos nessa faixa etária, os observava de forma quase empática - senão coberta de pena - aos dois abrindo a sanfona do elevador para ele entrar com os dois policiais de feição sérias demais para ler. Empurraram a maca sem dizer nada, um “boa noite” frio dito pelos dois policiais antes de esperar o Xerife terminar de dar os detalhes do crime.
-- Sexo feminino, 40 anos, foi um assalto. Foi cravada de balas na região do abdômen, o veredito na cena do crime foi reação ao assaltante que em desespero levou seus pertences e atirou quantas vezes fosse necessário até ter certeza do óbito. -- Pronunciou-se o Xerife entregando a prancheta para Lydia que a folheou, entregando-a para Marvin em seguida -- O que é necessário fazer é prepará-la para o enterro.
-- Recebemos alguns caixões novos esses dias, a família virá escolher? -- Questionou ela antes de pegar as luvas no bolso.
-- Ela morava sozinha, não tem família registrada no Maine ou alguma rede social que possa facilitar contato. O enterro será feito pelo coveiro, gravaremos seu nome em uma lápide simples.
-- Não há familiares. -- Marvin assentiu, retirando o lençol do corpo até conseguir ter uma visão da aparência deste. Não era muito bonita, seus cabelos foram tingidos por alguma tinta de baixa qualidade e manchava completamente os fios. Os olhos fechados mostravam uma sombra azulada, combinando com a roupa sem estampa de mesma cor -- Podemos escolher o caixão, portanto.
-- Sim, por gentileza. -- Pigarreou o Xerife -- Todos os dados pessoais estão na ficha.
-- Obrigada, Xerife, tenha uma boa noite. -- Lydia, sem constrangê-lo mais, abriu a sanfona novamente. Os policiais entraram e esperaram pelo chefe, mas o mesmo não se moveu. -- Vamos entregá-la ao meio dia. -- Prontificou a legista sem fitar o irmão -- Não é mesmo, Marvin?
-- É, é sim.
O Xerife sorriu, relaxado, e quando finalmente entrou no elevador foi interrompido pela voz de Lydia:
-- O senhor tem algum problema em nos dar uma folga no dia vinte e dois?
-- Depois de amanhã? Não sei se teremos homicídios nesse dia, mas podemos dar um jeito. -- Surpreso pelo pedido, não pôde evitar a curiosidade -- Algum compromisso importante?
-- Nós fomos convidados para um evento, eu e Marvin. Não é, Marvin?
-- Sim, nós fomos.
O som de Marvin empurrando a maca para a mesa foi audível até parar, as rodas cessando sua marcha.
-- Ah, é? -- Maldita curiosidade, ah, sim. Geoffrey já pensou em pedir para seus dois filhos convidarem Marvin e Lydia para algum lanche no pub do Ray, mas levou uma risada de resposta. Quem haveria de convidar os dois irmãos? Geoffrey tentou se convencer que a curiosidade vinha de um instinto paternal de cuidar deles, contudo, tinha de admitir uma sórdida vontade de sair gritando quem foi o autor da ideia genial -- Um amigo?
-- Colega de escola. -- Lydia deu de ombros, dando alguns passos para trás -- Folga no dia vinte e dois, então?
-- Mas é claro! Divirtam-se, meninos.
A sanfona se fechou e o elevador desceu.
IV
O casal de irmãos compareceu ao enterro de Barbara Smith, de 40 anos, no cemitério público da cidade do Maine. Às três horas da tarde, depois da preparação do corpo, rumaram sem obrigação alguma para o cemitério e se posicionaram, trajando as habituais roupas pretas, ao lado da cova aberta.
O coveiro olhou para eles de forma compreensiva e abaixou o caixão de cor marrom, envernizado e sem nenhum desenho na frente. Os caixões Brightlace possuíam um tipo especial para quem puder escolher, a maioria com flores, outros com anjos, enfim. Mas como a família não compareceu, Marvin deixou à critério de Lydia. Foi difícil, ela admitiu para o irmão enquanto vestiam Barbara. É difícil saber o que ela gostava, se gostaria de desenhos ou algo mais limpo na tampa. Ela optou, portanto, pela parte de dentro, onde o estofado branco estava enfeitado com diversas rosas de mesma cor. Estava bonita, muito bonita, o cabelo disfarçado pelo véu. Se houvesse um velório, o caixão aberto deixaria o cheiro das rosas eminente e ela aparentaria repousar sobre elas no sono eterno sem sonhos e apenas lembranças. Mas não houve velório, ela era sozinha, e somente os dois irmãos velaram por cinco minutos antes de fechar a tampa e dirigir o carro funerário.
-- Você quer dizer alguma coisa? -- Marvin perguntou, tocando levemente o ombro de Lydia. Ela segurava um guarda chuva no sol, rendado e negro, que ele achava muito elegante.
Lydia olhou para o coveiro que esperou o sinal para jogar a terra em cima do caixão. Também olhou para a lápide: Barbara Smith, com data de nascimento e óbito.
-- Bem. -- Começou -- Nós não conhecemos você mas a deixamos bela para seu repouso final. Que a natureza lhe guie para o solo e que ache seu caminho do outro lado. Lembre-se de nós, gostaríamos de ter tomado um chá na sua casa e feito amizade, mas o importante é que fizemos de qualquer jeito. Descanse em paz, Bárbara. -- Então fitou Marvin.
-- Bárbara, espero que goste de branco e de rosas, você parece ter sido uma mulher bastante cuidadosa com seus gostos. Descanse em paz, lembre-se de nós. -- E assentiu ao coveiro que iniciou recolocamento de terra. Depois de alguns longos minutos, a cova estava tapada e com duas rosas brancas posicionadas perto da lápide de mármore maciço.
V
A despedida foi marcada em uma casa de swing no centro da cidade. Pagava-se 15 dólares por pessoa e a cerveja era de graça, exceto os profissionais lá dentro. Quando Marvin estacionou o carro funerário na frente do lugar, ele entreolhou Lydia como se estivesse em dúvida do que eles tinham feito.
-- Vai ficar tudo bem, Marvin, vamos só desejar um bom casamento.
-- Podíamos ter feito isso na igreja, o Padre Bennet é um bom homem.
-- Eles não vão casar na igreja, são bem modernos. -- Lydia retirou os óculos escuros e os guardou na bolsa que deixaria no carro. Ela arrumou a camisa de Jim Morrison e retirou a franja da testa -- Você está bonito.
-- Você também, como sempre. -- Devolveu o elogio -- Vamos então, mas só um pouco.
Sua irmã sorriu e abriu a porta do carro, esperando ser seguida e assim o foi. Eles atravessaram a calçada e pagaram a entrada para uma mulher risonha mascando chiclete e Lydia conseguiu sentir que ela desejava fazer uma piada sobre os trajes de Marvin que consistiam em sobretudo preto e coturnos, além da aparência. Mas como eram clientes e mesmo que fossem dois maníacos assassinos não poderia falar nada, os deixou entrar sem antes murchar a bola de chiclete rosada na boca.
Por dentro o local era claro e isso era ainda pior. Se fosse escuro, os dois irmãos não teriam visto a orgia sexual em cada mesa, mulheres descendo por canos e homens rebolando recebendo cédulas na minúscula roupa íntima. A casa de swing cheirava à suor e sexo e como se não bastasse, finalmente uma pessoa fez piada relacionada a roupa de Marvin:
-- Todo o mundo para debaixo da mesa, o moleque vai atirar! Aqui não é Columbine, babaca! -- E risadas, principalmente das prostitutas, embora algumas tivessem fitado tanto Lydia quanto Marvin no ponderar se valia a pena o sexo rápido por algumas notas. O sobretudo era de veludo, as bijuterias caras, por que não? Mas eles se movimentavam rápidos, avistando Terrence dançando na companhia de mais duas prostitutas e os colegas de escola fazendo o mesmo, alguns sozinhos, outros na viagem da droga.
Como esperado, ele fingiu não conhecer o casal. Era impossível permanecer no papel, todavia, pois Marvin e Lydia esperavam alguma recepção em frente a mesa, sem se mover, parados como bonecos de cera. Uma irritação veio à Terrence pelo ocorrido, lembrando-se da esposa que fez questão de convidar dizendo: “Terry, eu irei pagar essa putaria, então deixe seus amigos vir. Eles são sozinhos, prestam um grande favor a nossa comunidade fazendo um trabalho difícil de fazer, se eles vierem, receba-os bem.” Só que Terrence jamais imaginou que eles viriam e ficariam parados em frente a uma mesa enquanto uma mulher sem sutiã dançava sensualmente.
-- Olá? -- Perguntou ele, largando a prostituta risonha perante a cena -- Marvin e Lydia Brightlace! Não imaginávamos que viriam…
-- Cacete, quanto tempo! -- Kathyln, no colo de um gogo-boy, estendeu a mão para eles -- Lembram de mim?!
-- Vocês moram na mesma cidade que a gente, nos vemos todos os dias na rua. -- Marvin se pronunciou, apertando a mão dela. -- Olá, Kathyln.
-- Huuuh, gelado! -- Ela deu um gritinho -- Fiquem a vontade, sim?
-- É ela sua noiva? -- Lydia questionou.
-- Não! Meu Deus, não. -- Terry caiu na risada, apertando a mão do casal -- Vocês não conhecem ela, não é do Maine. Kathyln é só uma amiga, sempre foi. Sentem-se, por favor.
-- Não, eu…-- Lydia se encolheu -- Eu acho melhor irmos embora, viemos só desejar felicidades.
-- É, felicidades. -- Marvin concordou.
-- Sendo assim, muito obrigado. Tem certeza que não querem ficar? Podemos dar um convite à vocês pro casamento, seria bom se fossem, afinal, somos colegas de escola. Podem beber o que quiser, e ficar com quem quiser, a noite é toda nossa.
-- Sua noiva sabe que você está aqui, não é? -- O legista perguntou, assistindo uma prostituta se aproximar dele e sair quando o percebeu conversando.
-- Sabe sim, é uma mulher muito liberal. -- Riu-se Terrence -- Se for para ficar amarrado pelo resto da vida, que a vida de solteiro acabe com chave de ouro!
-- Ah, entendi. Meu pai sempre dizia que a última noite de um homem como solteiro é especial, mas acho que ele não se referiu a isso, não é, Marvin? -- Lydia olhou o irmão que suspirou melancolicamente, como se arrebatado por um súbito sentimento de tristeza e vazio em meio a música ambiente e eventuais gemidos.
-- Desculpe, não conseguir pegar o ponto de vocês…
-- Se você a ama, por que se refere ao casamento como uma prisão? E se a ama, por que deseja outras mulheres? O amor não é desejo frequente por somente uma pessoa e o desejo frequente não é amor? Não faz sentido. -- Marvin, sem se sentar, pegou uma taça de champanhe para Lydia e uma para si, bebericando um gole suave enquanto a irmã tomou somente de uma vez -- Estimada irmã, com cuidado.
Terrence tinha muito a dizer e ao mesmo tempo, nada. Ele não reagiu ao toque de alguém no seu traseiro e alguém veio a seu socorro. Ítalo, um dos mais famosos jogadores de baiseboll da escola e principal carrasco dos irmãos, estava presente e veio fechando a braguilha manchada da calça.
-- Puta merda, me sinto um adolescente esporrando na calça de novo. -- Riu-se, tomando um susto na visão de Marvin e Lydia -- Olha se não é os dois irmãozinhos de Tim Burton. Deixaram vocês entrar?
-- Vamos embora, Marvin, por favor. -- Pediu Lydia e Marvin atendeu, virando a costa. Ítalo não parecia satisfeito de ter a principal diversão da noite, depois do sexo, desvanecer.
-- Diz aí, Terry, você convidou os esquisitões por que quer alguém pra cuidar do seu cadáver quando bater as botas? Caralho, foi inteligente. Mas se eu fosse você não deixava, vai que eles fazem coisas com os corpos lá dentro que ninguém sabe!
Foi o estopim para o médico legista parar. Lydia o segurou pelo pulso e tentou puxá-lo, mas este ficou parado e virou-se para Ítalo.
-- Do quê você está falando?
-- Ítalo. -- Pediu Terry -- Pare. Não é nada disso, eles foram nossos colegas e está todo o mundo aqui.
-- Está dando uma de bom samaritano agora? Espere, você sempre foi o bonzinho, mas ria que nem um doido quando a gente falava que ela era um dos cadáveres que ganhou vida e o pai dela acabou adotando junto com o irmão.
-- Me desculpem. -- O noivo implorou -- Faz muito tempo, eu..
-- O que você disse sobre nosso trabalho? -- Marvin interrompeu, firme -- Nós não desrespeitamos nossos convidados.
-- Convidados? Cara, vai te tratar. Com certeza algum parafuso dessa sua cabeça afrouxou de tanto formol. São cadáveres, seu babaca, e com certeza vocês fodem com eles porque não conseguem ficar perto de gente viva.
-- Você um dia vai morrer, Ítalo. -- Lydia tentou ao máximo engolir suas lágrimas -- Vai precisar de nós.
-- Vou morrer, sim, mas vou ser embalsamado bem longe daqui. A profissão de vocês é nobre, vamos admitir, ninguém em sã consciência faria um trabalho assim. -- Ítalo riu e a turma, com exceção de Terrence, se explodiu em gargalhadas -- Essa pose esquisitona só faz as pessoas se afastarem de vocês.
-- Ou você para ou eu te expulso daqui. -- Terrence, envolto por uma atmosfera de arrependimento e peso na consciência, puxou Ítalo pelo braço. Ele se desvencilhou e estufou o peito.
-- Qual é, Terry, alguém precisa falar umas verdades pra eles. Quando chegam em um lugar, o cheiro é forte e a aparência é pior ainda! Ou param com isso ou saem da cidade, porque ninguém é obrigado a ver isso, cara. É parte de um papel que vocês seguem?
-- Ouça. -- Marvin suspirou de novo -- Eu sei todos os segredos da anatomia humana, lido com crimes hediondos todos os dias junto à minha irmã e conheço o lado doentio e obscuro da sociedade. Eu vejo coisas que você sequer aguentaria em uma noite, nós lidamos com situações que qualquer um de vocês não suportaria chegar perto. Essas experiências dão uma visão muito além do que copular como um coelho e viver para futilidades, então, não temos paciência para ladainha dos vivos. Se vocês tem algo contra nós, digam a vontade, mas não desrespeitem os corpos pois mesmo que tenham sido tão idiotas como você em vida, estão passando pela transformação da Morte e precisam de respeito.
-- Ítalo, eles enterraram meu avô. -- Terrence revelou -- E deram toda a assistência necessária. Não eles, mas seus pais, e tenho certeza que se lembram do quanto foi importante, então pare.
Lydia olhou para Terry bastante surpresa e Marvin compartilhou do sentimento, contudo, fitou o chão.
-- Se eles ficarem, eu vou embora. Valeu, Terry, pela consideração. A festa de repente virou um evento funesto.
-- Não tem problema, nós vamos embora. -- Lydia voltou a puxar Marvin -- Obrigado, Terrence, e muitas felicidades. Não esquecemos de seu avô e que esteja em paz no além.
-- Se você quiser comer mulher, coma a vontade e fique com eles, porque pra mim a festa acabou. E não por causa deles, e sim por sua causa seu imbecil egoísta do caralho. -- Terrence empurrou o melhor amigo de escola, pegou a carteira e saiu porta afora com o casal de irmãos, ouvindo outro grito sobre Columbine da outra mesa e outras risadas.
O cotidiano de Marvin e Lydia aparentava ser doloroso, cercado de piadas infames e sem graça, expulsões de lugares públicos e uma total hipocrisia quando o assunto era recorrer a eles quando alguém morria, exigindo um certificado de óbito, o laudo, o funeral, exigindo que compreendessem suas dores enquanto eles não compreendem as deles cada dia. Terrence se sentiu inútil, fútil, reclamando de problemas pequenos enquanto os dois tiveram que lidar com a morte da mãe na infância e a do pai na adolescência, tomando os negócios da família com tamanha responsabilidade que a juventude não existia, somente a sensação de dormência no meio do tempo, mais concepção da morte do que da vida. Eram pálidos, trajavam preto, compravam LSD barato e tomavam tanto café na sala de operação que o local cheirava à cafeína e formol. Eram duas estátuas de mármore vivas existindo em um mundo onde ninguém entende o negro e quer que tudo seja iluminado.
-- Me desculpem. -- Ele repetiu em frente à casa de Swing -- Por tudo.
-- Não devíamos ter vindo, acabamos com sua diversão. -- Marvin abriu a porta do carro para Lydia que dessa vez ia dirigir.
-- Não, vocês estavam certos desde o início. Mary Ann não queria que eu viesse para cá, mas pagou mesmo assim porque acreditava que se eu não fizesse isso, ia ficar frustrado pelo resto da vida. Ela quis que eu tivesse quantas mulheres fosse necessário porque ela é minha primeira namorada e vamos nos casar. Eu a amo, eu sei que a amo. -- Terry quase implorou -- E quando você falou aquilo eu percebi que...Se eu a amo, isso aqui não faz sentido.
-- O sentido da vida é o amor. -- O legista entrou no carro e fechou a porta -- Respeite-o. Se não puder corresponder a alguém que o ama de todo o coração, não iluda esta pessoa, não gaste sua vida em coisas fugazes quando se tem tudo. Vamos, Lydia.
Antes de darem partida, contudo, ouviu-se um estalo. Terrence no meio da rua esticou o pescoço e viu que o motivo era uma lâmpada dentro da Casa de Swing cujo explodiu. Outras vieram em seguida, causando verdadeiro pânico nas pessoas que abriram a porta do estabelecimento na pressa de se salvarem do incêndio causado pelas explosões. Alguns saíram com o rosto sangrando, cacos das lâmpadas enfiados nos olhos, uma cacofonia caótica de gritos e pessoas nuas se revirando no chão vítimas das chamas.
-- Meu Deus, o que é isso?! -- Terry correu para a calçada, tentando ajudar quem podia. Lydia pegou o celular e discou calmamente o número dos bombeiros e Marvin deu partida no carro. Após sua irmã desligar o celular, ela saudou uma figura conhecida nas calçadas a medida que o automóvel se movimentava.
-- Obrigada, Barbara. -- Agradeceu, um sorriso aberto nos próprios lábios grossos e pintados de escarlate.
-- É, obrigado, Barbara. -- Marvin repetiu, relaxando os músculos que estiveram tesos desde a entrada na Casa de Swing.
VI
-- Ítalo Clark -- Lydia leu na ficha. Um total de quatorze corpos estavam esperando para ser preparados e Marvin fez duas garrafas de café, posicionando-as por perto. Os aventais amarrados, as luvas azuis nos dedos, as máscaras no pescoço. Tudo estava pronto, mas foi com surpresa que eles viram o corpo parcialmente queimado de Ítalo em expressão de agonia na mesa.
-- Não será necessário arcada dentária, ele está reconhecível. -- Marvin fechou uma das urnas na parede, o par de pés do corpo desaparecendo no escuro. -- A família escolheu o caixão?
-- Querem anjos na frente, a namorada mandou uma coroa de flores escrita: “Fiel e dedicado”. -- Lydia jogou a ficha na mesa das garrafas de café.
-- É uma mentira, nós sabemos, mas lembre-se do que nosso pai dizia, irmã. Nós cuidamos para que a passagem do corpo seja íntegra, mas não sabemos se o corpo em questão foi íntegro. Fazemos nossa parte, cada um deles guarda um segredo.
-- Barbara parecia boa e cuidou de nós, que nem Heitor, Jeffrey, Julia, Richard…
-- São pessoas que reconhecem nosso trabalho até do outro lado, mas não vamos esperar isso de Ítalo.
“Por mim que perecesse na vala”, pensou, e Lydia pareceu ler - como sempre - seus pensamentos.
-- Vamos limpá-lo e colocar um terno qualquer, o resto a família fará. E quem é esse que você está vendo, irmão?
-- O que me comparou aos garotos de Columbine. -- Marvin riu -- Quer dizer que eu estava elegante, então? O que acha de eu começar a usar óculos também?
-- Os médicos legistas de Columbine tiveram muito trabalho! Quero óculos também, a camisa do Natural Selection para fazer companhia a você.
-- Você sempre faz companhia a mim, minha querida e amada Lydia. Minha amiga e fonte de inspiração. -- Marvin fez um floreio antes de beijar a bochecha da irmã. Após um abraço, houve o ligar do aparelho de som acoplado na vitrola de Nathaniel Brightlace. Como o disco posicionado era da banda The Doors, a voz de Jim Morrison ecoou como uma narrativa poética ao que os dois irmãos começariam a fazer.
-- Obrigada, Lucy, você sabe que eu adoro Jim Morrison. -- Lydia fez uma referência ao aparente nada perto da vitrola. Pegou o bisturi e dando uma olhada geral no corpo de Ítalo Clark, começou a cortá-lo e retirar os órgãos enquanto Marvin cantarolava pegando alguns recipientes.
-- Ah, e Lydia…-- Ele disse, olhando-a como fez na noite que citou o convite. Mas havia um humor negro nas suas palavras -- Quando alguém nos convidar para uma despedida de solteiro, nós não vamos.
-- Agora nós já sabemos o que é, estimado, e eu não tenho vontade alguma de repetir a dose.
Os dois riram e o teclado de Ray Manzarek aumentou ao que Jim berrava prometendo uma noite inteira, ah sim, deixe rolar a noite inteira. Há certas pessoas que sabem muito mais sobre a morte do que sobre a vida.
“Let it roll, baby, roll, let it roll, baby, roll
Let it roll, baby, roll, let it roll
All night long”
Roadhouse blues ( The Doors )