A CARTA...

Escrevo esta carta para que após minha partida saibam como foi minha existência.

Nunca disse o que me foi à alma. Minha personalidade introvertida, aliada à minha

falta de atrativos físicos, mantiveram todos sempre à distância, não me abrindo

caminho para expressar meus sentimentos ou desejos.

Moro há muito tempo nesta vila; ou melhor, existo aqui por toda minha vida

enfadonha e sem elegância.

As ruas são de pedras, geralmente enlameadas, fazendo com que as rodas das carruagens

façam respingar a sujeira nos transeuntes menos, ou quase nada, abastados que

perambulam por estas vielas sujas, circundadas por paredes totalmente ausentes

de cal; e se houve alguma pintura, dificilmente poderá ser vista sob a camada de

sujeira que nelas se impregna à cada dia .

Aqui, os dias são barulhentos, cheios da algazarra dos meninos descalços e esfomeados

que roubam um pão aqui, uma maçã acolá dos feirantes. Sendo amaldiçoados por todos

os demônios do inferno, sem no entanto sentirem medo ante tais maldições. Creio que

não sentem temor do Hades porque já queima em suas peles encardidas o calor dele.

As noites são difíceis de serem descritas. Mas posso faze-lo, uma vez que quase não

faço ouvir minha voz, observo tudo e todos. Não que eu fique à espreitar a vivência

alheia. De forma alguma! Minha própria desgraça é suficiente para me ocupar de mim

mesma, buscando formas variáveis de dar mais um passo. Aspirar mais uma lufada de ar,

ou mesmo sustentar meu corpo franzino sobre minhas pernas esquálidas e pálidas.

Mas quando as janelas se fecham e as pessoas de bem ( As chamam assim, não?); como

se ser de bem, fosse se trancar em suas confortáveis casas, indiferentes aos miseráveis

que definham nas alamedas frias e fedorentas, lutando sabe-se lá porque razão para

continuarem vivos.

Há prostitutas por todos os cantos. Se apinham nos bares. Vestidas com seus trapos

que ousam chamar de vestidos. Rotos, coloridos em demasia, pobres de rendas, brocados

ou bordados, o que emprestaria um pouco mais de respeito às vagabundas. Não. Moral

alguma lhes cabe. Maquiagens baratas lhes escorrem das faces anêmicas. Um sorriso é

suficiente para mostrar os dentes podres; o que não impede que os bêbados lhes suguem

os lábios, borrados de batom vermelho. Cor que somente as mulheres à toa ousam

usar. Senhora alguma, seria tão atrevida á ponto de pintar suas bocas de forma tão sensual

e ousada... Bem, ali não há senhoras nem senhores. Todos fazem parte da ralé. Daqueles

para quem bem cedo Deus virou o rosto, lhes furtando toda a possibilidade de serem

chamados de " Gente".

Mas eu os vejo. Vejo seus olhos cansados, onde há muito os sonhos naufragaram

em mares tão profundos e escuros, que anjo algum ousaria resgata-los. São almas vazias

de poesia. De qualquer contemplação que não seja a de uma garrafa de aguardente

barato para lhes anestesiar os sentidos e a consciência da maldita vida que lhes

foi outorgada, ou permitida, que seja, pelo criador.

Sei bem quem são.

Sou uma delas...

CONTINUA....

Anna Corvo Poe
Enviado por Anna Corvo Poe em 01/04/2017
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