Obsessão
Canto como aviso à todo o mortal
Que ignora as verdades do bem e do mal
Nefanda é a língua, na Terra e no céu
Minora a fortuna e traz fim cruel
Cuidado da voz que sai ao falar
Porque tu não sabes se estarão a cantar
Se no amém derradeiro pedires com fé
Laureado serás, mas não com o que quer
OBSESSÃO
substantivo feminino
1. ant. suposta apresentação repetida do demônio ao espírito.
2.apego exagerado a um sentimento ou a uma ideia desarrazoada.
Clara fechou o dicionário. Seria esse o mal de Afonso? Uma obsessão? Enxugou as lágrimas, tentou se conter, conferiu as horas. 02:40 da madrugada. Levantou-se, procurou uma enfermeira em busca de algum tipo de consolo que não encontrou. Voltou a sentar-se e olhar o dicionário. Preferia mil vezes uma Bíblia, mas era professora de Letras e não de Teologia, andava com dicionários em sua bolsa e não com exemplares da vontade divina. Suposta apresentação repetida do demônio ao espírito. Sem dúvida era isso que afligia seu marido. Afonso era um bom homem, um bom marido, foram colegas de faculdade, ela cursando letras e Afonso odontologia. Se conheceram ao acaso, amaram-se de primeiro momento. Desde aquele dia no DCE, o barzinho que sempre iam perto da faculdade, quando Afonso a beijou, nunca mais se separaram. Dali a cinco anos casaram. Nunca tiveram filhos, não por falta de tentativa, mas por Providencia divina, por algum motivo Clara era estéril. Hoje completariam 3 anos de casados. Suas bodas de couro estavam sendo cumpridas ali, no Hospital Geral de Itaburú. Apertou o dicionário com força contra o peito, uma lágrima tentou escorrer, mas foi contida pelos olhos que cerravam-se. Fez uma prece, mas não sabia a quem endereça-la, nunca fora religiosa, nunca pisara em uma igreja. Seu marido, ao contrário, fora criado em um lar cristão. Quando criança sempre ia a igreja e participava das festinhas, como adolescente esfriou um pouco na fé, e a chama do credo quase apagou-se em seu coração ao adentrar na universidade, mas os acontecimentos dos últimos dias o tinham feito voltar ao primeiro amor. Clara estava desconsolada, o caso do seu marido era grave, o médico tentou explicar com linguagem clínica o que acontecera, mas Clara não queria ouvir.
Seu marido perderia a visão de um olho, isso era certo. O olho esquerdo talvez conseguisse manter alguma coisa da acuidade visual, a culpa era o ressecamento. Afonso ficara sem piscar por horas, talvez uma ou outra piscada aqui e acolá, mas o fato é que seus olhos apresentavam sérias queimaduras. Seus dedos estavam machucados, o médico falou algo sobre úlceras de pressão, isso não fazia sentido para nem um profissional de saúde daquele hospital. Fazia, entretanto, para Clara. Afonso passara horas olhando aquele maldito texto, horas sentado e com olhos abertos, os músculos rigos e os dedos em uma constante pressão sobre a mesa do computador, tenso, concentrado, resoluto, em uma busca obsessiva pela perfeição. Um apego exagerado a um sentimento ou a uma ideia desarrazoada. Seja lá que escreve os dicionários, estava certo. Era de fato Um apego exagerado apresentado pelo demônio. Se Afonso era tão religioso, como Deus permitiu que aquilo ocorresse a ele? As úlceras e a perda da visão eram desagradáveis, mas o que o conduzia aos braços de Caronte era a desidratação. Começara com um simples dor de cabeça que, no primeiro momento fora atribuída as horas em frente ao computador, mas com o tempo, Clara percebera que sua boca estava seca e que Afonso ardia em febre. Ela tentou fazer com que bebesse algo, mas nessa fase ele escrevia e escrevia, não consegui deglutir o líquido da vida, não conseguia tiras os malditos olhos de frente daquele maldito computador. Só quando caiu em convulsões Clara teve a ideia de chamar o SAMU. Agora se culpava, ela era uma mulher inteligente, poderia ter pensado nisso antes, era patente que seu marido não estava gozando de sua sanidade mental, porque não pediu ajuda antes? Porque não tentou o impedir de seguir naquela obsessão. Obsessão, uma palavra tão pequena, mas que agora tomava um peso e um ar demoníaco. Obsessão, seja qual for a obsessão é algo ruim. Passou a pensar que as pessoas subestimavam o poder de uma palavra, uma simples tristeza era chamada se depressão, um pequeno ajuste em algo torto era chamado de toc, um futebol todo sábado era chamado de obsessão. Esquecer-se de beber, de se alimentar, esquecer-se de piscar a fim de terminar um texto, isso sim era obsessão, a obsessão no seu estado mais puro e destilado. Um néctar diabólico que pingara sobre o seu Afonso e o fizera perder o siso. Meu Deus... o que seria do seu marido agora? Quando os socorristas da SAMU chegaram não conseguiram acreditar, havia um cheiro terrível de fezes e urina no escritório de Afonso. Ele estava trancado lá a dias, dias sem ir ao banheiro, mas não sem fazer suas necessidades. Por que não fez nada contra isso Clara? Por que viu seu marido defecar nas próprias calças e achou isso normal? As vozes acusavam Clara. Em sua cabeça martelava a ideia de que poderia ter agido mais cedo. Poderia, mas tivera medo. Culpava-se, a culpa disso tudo era sua. Lembrava agora da discussão boba que tivera, conversaram degladiando-se em argumentos a fim de se determinar qual dos dois seria melhor poeta. Que discussão boba, que pera de tempo! Clara nem ao mesmo conseguia lembrar de como chegaram nesse assunto, mas, lembrara-se muito bem do final do episódio, Afonso afirmou ser capaz de escrever um texto perfeito, um texto que deixaria Clara ciente do seu potencial literário. No dia seguinte Clara nem s lembrava daquele momento, não era algo importante, ela e Afonso se amavam e sabia que o amor era construído com discussões bobas. Afonso apresentou um texto para Clara, haviam alguns erros de português, e um pouco de cacofonia, nada de muito pesado, em fim até que era um bom texto, em sorrisos o casal se abraçou, Clara admitiu estar errada sobre os dons literários de Afonso, e ele admitiu que aquilo era uma perda de tempo, deixaria os textos com ela e seguiria sua carreira de dentista. O casal estava feliz e apaixonado, naquela noite namoraram como dois adolescentes, brincaram e desfrutaram da companhia mútua. Seria a última vez que dormiriam juntos. Pouco antes de dormir Afonso voltou ao assunto do seu texto, ele sabia que não era tão genial, gostava da sua profissão, mas sempre sonhara em ser um poeta, um escritor famoso. Foi ali que ele disse, Clara agora se lembrava, presa em seus devaneios, lembrou-se de uma frase dita por seu amado em seu leito conjugal. "Eu queria escrever melhor sabe?, queria não errar tanto". Clara agora estava pensativa. Voltou a conferir as horas, eram 3:00. O tempo se arrastava naquela fria sala de espera. Levantou-se e deixou a cadeira como quem gostaria de deixa um pensamento ruim para trás. Foi na manhã seguinte que começou, lembrou. Após aquela fatídica frase Afonso mergulhou em um turbilhão literário de obsessão, escrevendo e re-escrevendo, nunca satisfeito com sua obra, sempre a acrescentar uma vírgula, a substituir um "mas" por um "entretanto" e a "des-susbistitur" logo em seguida. Seria culpa daquela frase? Clara agora andava de um lado para o outro. Seu marido encontrava-se a alguns metros dela, estava no CTI, os médicos disseram que ele fizera um esforço muito grande, e isso agregado a falta de alimentação e a desidratação o tinham colocado em um estado grave. Um pensamento continuava a assombrar a cabeça da pobre Clara. Teriam as palavras poder? Seria possível que em algum lugar alguém tivesse ouvido o comentário de seu marido e o tornado realidade? Lembrava-se agora de um versinho que sua falecida avó dizia, algo como ter cuidado com o que se fala. Eram histórias de uma velha avó para uma netinha infantil, pensou Clara, não deveriam serem levadas a sério, mas algo a incomodava, no versinho dizia que se os anjos cantassem amém no céu qualquer pedido na Terra seria atendido. Impossível. Clara tornou a sentar-se. Não acreditava em anjos, muito menos no sobrenatural, e mesmo que houvessem anjos, eles seriam bons certo? Não amaldiçoariam um bom homem. Toda essa situação, toda essa desgraça repentina, nada de bom poderia sair daquilo. Uma tristeza repentina assolou sua mente. Solidão, solidão e desespero, seu marido estava morrendo no dia do seu aniversário de casamento e não havia nada que pudesse ser feito. Talvez... se tivesse agido antes... A culpa começara a germinar no coração de Clara aumentando exponencialmente seu sofrimento. Um médico apareceu pondo fim a espiral destrutiva que abraçara Clara. Seu marido acordara e estava lúcido, queria vê-la. No quarto alguns aparelhos indicava que seu marido estava estável, a visão era triste. Ver o seu amado ali, naquele estado a fazia querer chorar. Sua pele estava ressecada e seus olhos enfaixados, haviam feridas nas pontas dos dedos e Afonso nitidamente perdera 6 quilos. Afonso não podia falar, uma máscara o auxiliava a respirar. Os médicos não conseguiam compreender bem o que o acometia, era como se uma força misteriosa drenasse suas forças. Clara se aproximou e fagou-lhe os cabelos, Afonso falou algumas palavra ininteligíveis. Clara chorou, não aguentou ver seu marido naquele estado, os médicos pediram que se retirasse, se o quadro se mantivesse estável ele teria grandes chances de se restabelecer. Ao lado de fora uma enfermeira tentou a amparar. Em fim um pouco de consolo. Ela trazia uma Bíblia consigo e Clara não se fez de rogada ao pega-la. Não sabia bem o que fazer, mas de certo era melhor que seu dicionário. Existindo um Deus ou não, a Bíblia era o livro mais vendido no mundo, sem dúvida acharia um pouco de consolo ali. Abriu de forma aleatória e leu um verso, assim como ouvia que as pessoas faziam. "Todos estes foram filhos de Hemã, o vidente do rei nas palavras de Deus, para exaltar o seu poder; porque Deus dera a Hemã catorze filhos e três filhas." Não conseguiu alcançar consolo com isso, não entendia como aquele livro funcionava. Desesperou-se mais uma vez, sentia-se completamente perdida, sabia que seu amado a deixava lentamente e com ele o chão debaixo dos seus pés. O que seria dela agora? Cerrou os olhos com força e apertando a Bíblia conta o peito fez uma prece, na verdade, sua primeira prece sincera, pediu a Deus perdão pelos anos de ignorância, por todo o tempo que o deixara de lado, pediu orientação nesse momento, pediu misericórdia, se houvesse um Deus no céu, não haveria melhor momento para se manifestar, pensou. Encerrou a oração com um amém, embora não soubesse muito bem o porquê. Novamente abriu as santas páginas, abriu mais para frente, depois da metade do livro. Foleou um pouco e carteou um verso. "Quem há entre vós que, tendo ficado, viu esta casa na sua primeira glória? E como a vedes agora? Não é esta como nada diante dos vossos olhos, comparada com aquela?" Não funcionara, o que aquilo queria dizer?Não estava certo, não fazia sentido. Clara fechou os olhos, deixou que as lágrimas rolassem livremente. Meu Deus, eu preciso de ti. Foi uma frase dita baixinho, mais sussurrada do que falada, se os anjos levam nossas orações até Deus, sem dúvida o anjo precisou colar os ouvidos a boca de Clara para a ouvir. A frase era simples, mais cheia de sentimentos, Clara estava desesperada, sentia algo diferente, algo como uma presença ali na sala de espera, sentia-se acompanhada por alguém. Não era aquela sensação inquietante de que estava sendo vigiada, era mais como... Um abraço. Levantou-se e tornou a abrir a Bíblia. Olhou no sumário. Algo a levou a abrir em um livro chamado Rute. Não, não era ali. Não leu nada, sabia que não era ali. Voltou ao sumário. Evangelho segundo São João. Algo a deteve ali, sentia que estava "quente", chegando ao destino. Foleou algumas páginas até que algo a deteve, sabia que era ali, alguma coisa a guiara até aquele punhado de versos. Correu o dedo pelas linhas e fechou os olhos, mais uma vez implorou pelo socorro divino, deteve-se no verso 11. "Disse-lhe Jesus: Eu sou a ressurreição e a vida; quem crê em mim, ainda que esteja morto, viverá". Sentiu-se aliviada, agora sentia que alguém a ouvia, seria uma coincidência ou de fato Deus a ouvira? Não, não podia ignorar tudo o que sentia, não chegou ali por acaso, fora guiada. Era por isso que seu marido era tão teimoso com as coisas religiosas, ele sem dúvida já sentira essa presença. Mas e agora? o que exatamente significava aquele texto? Não importava, Clara sabia que não estava mais sozinha e acima de tudo sabia que seu marido era um bom homem, ela sabia que independente de como aquela noite terminasse um dia Afonso iria para um lugar melhor e eles sem dúvida um dia se encontrariam, porque a partir daquele momento Clara decidiu-se por abraçar a fé de seu marido e buscar a Deus.
Clara não sabia, mas estava certa, Afonso de fato iria para um lugar melhor. Enquanto Clara lia mais alguns versos atribuídos a Jesus, o Próprio Cristo recebia Afonso de braços abertos na morada celestial.