O Preço da Liberdade

Raphael Mardine*

Minhas orbes trêmulas percorrem todo o ambiente ao meu redor; fogo; sombras e tudo que possa rotular como o inferno em pessoa estava presente ali, meu corpo é mergulhado em ferro derretido entrando em combustão e se dissipando em cinzas em questão de segundos, sinto minha alma esvair porém logo em seguida me recomponho novamente em minha forma física, o ferro derretido me dá o reflexo de minha aparência, mas por mais que eu tentasse focar na imagem que ali era refletida, nada que surgia naquele mórbido rosto, naquela grotesca face, se assemelhava àquilo que eu já fui.

Não, eu não estava deformado por conta das inúmeras torturas que tenho passado nesses últimos dias, anos, ou talvez séculos; não, eu não estava carbonizado pelas queimaduras referentes ao ferro derretido, a lava em meus olhos ou minha pacata moradia a garganta do diabo, nada disto teria causado o reflexo que vejo diante de meus olhos, aquilo que eu via mais se parecia um Homúnculo, um corpo sem alma, sem rosto, sem olhos, nariz ou boca, um corpo sem qualquer órgão interno, sem uma imagem e sem emoção, um rosto que não demonstrava nada mas que ainda assim, podia sentir em sua pele o ódio fixado pelo sangue de Lúcifer, que ainda podia tragar em seus pulmões o sentimento de vingança pelos estupros ao me deitar sem escolha aos braços de demônios e anjos caídos.

Naquele momento, eu consigo entender... Consigo entender realmente quem eu me tornei; consigo entender o porquê de meus olhos não existirem mais em meus reflexos, consigo entender como me tornei tão vazio e entendo.

Entendo que finalmente ele conseguiu o que queria, conseguiu me transformar na criatura que eu mais evitava; conseguiu me tornar uma verdadeira marionete de Satanás, cordas presas ao meu pescoço, um preço à minha cabeça, linhas e mais linhas percorriam o meu corpo vazio; controlando cada movimento que me era dado; cada dor que eu sentia; tudo aquilo estava programado para acontecer, eu não podia evitar de sentir dor, eu não podia evitar de sentir medo e talvez até mesmo esses pensamentos que fluíam em minha mente estavam TODOS programados, eu havia me tornado definitivamente uma marionete, uma puta do inferno, um escravo sexual e eu não pude evitar.

Imagens sórdidas então invadem minha mente, me perdi em meio a novos pensamentos; gananciosos e traiçoeiros para a minha doutrina e antiga religião que, de alguma maneira, por mais que eu tivesse a seguido á vida toda, acabaram me levando até ali.

O Deus que me prometia moradia em seu céu, do bom e do melhor, acabou me traindo e me trazendo às profundezas de um pesadelo incorporado pelo mesmo, se ele havia me traído a esta maneira, porque eu, tão jovem, morto injustamente a pedradas por uma população moribunda que apenas enxergava seu ponto de vista e que por mais que eu tenha sofrido tanto em vida que acabou me levando ao pecado, continuei a sofrer mesmo após a morte, sofrer por dias, por noites, e sabe se lá por mais quanto tempo eu sofreria.

Ali então decido entregar-me; entregar-me as torturas e maus tratos sofridos naquele mundo criado pelo meu Deus, entregar-me e deixar de lado a vingança pelos dias e noites afogados em dor; por todas vezes que vi meu corpo dissipar em meio aos céus daquele reino esnobe de poder incomparável; entrego-me a traição por minha religião que já havia me traído; entrego-me a deixar de lutar e resistir as sombras que persistiam em me acompanhar; entrego-me e enfim, permito que os meu últimos resquícios do frasco em meu pescoço com o néctar de minha humanidade se quebrasse.

E ali, enquanto estava prestes a afogar-me a solidão da dor e agonia; ali enquanto estava prestes a queimar em cinzas outra vez; vejo em meu próprio reflexo; meus cabelos que cresciam uma outra vez, a dor se esvair por algum motivo e não tocar meu corpo que já se preparava para queimar pela eternidade uma outra vez, vejo as cordas que residiam internamente em mim se queimarem e sumirem em questão de segundos, e ainda que com um árduo sentimento de medo fiz aquilo que eu mais temia; pisquei imaginando que aquilo me levaria a acordar; e após muito tempo com um forte receio; abro meus olhos outra vez; e noto que tudo ao meu redor havia mudado outra vez, e que enfim, palpável mais uma vez; pude sentir a liberdade, pude sentir meu rosto e pude mover-me sem qualquer linha dentro de meu corpo, sem qualquer corda em meu pescoço e sem um preço em minha cabeça.

A liberdade tem um preço, e o seu preço é ser livre.

* Estudante da Escola Estadual 19 de Julho em Peixoto de Azevedo MT.