Diário do Andarilho (Passos Lentos)
Certa vez caminhava eu por algum ponto vazio do universo. O solo era formado por rochas pontudas que feriam meus pés, mas não me importava, estava atrás de uma resposta e o Homem no Espelho me disse que ali eu a encontraria.
“Como se mata uma idéia?”
Já a beira do cansaço, vi que alguém vinha em minha direção, à luz azulada e frágil deixada aqui por alguma estrela distante dava-me apenas uma imagem humanóide coberta de sombras.
– Quem anda neste solo sagrado? – a voz ressoava em tons incompreensíveis.
– Eles me chamam de Andarilho – respondi.
A criatura se aproximou revelando feições andrógenas cobertas por um pó vermelho, seu manto era de um negro tão profundo quanto à vastidão do universo e aos poucos parecia querer engolir-me.
– E para quem esse lugar é sagrado? – perguntei olhando em volta e só vendo pedras lisas apontando para todas as direções.
– Para o meu deus – ela respondeu.
– Onde está o seu deus?
– Eu sou meu próprio deus – a criatura pareceu irritar-se com a pergunta. – O que quer, Andarilho? Diga e parta.
– Primeiro diga quem é e saberei se pode ajudar-me.
Eu já havia reconhecido-a e ela sabia disso, tantas vezes a vi, em todas elas de forma diferente. Ainda assim a Morte se apresentou.
– Nasci para os vivos, mas não foi assim desde o principio. Alguns me aceitam, a maioria me despreza e nenhum deles me compreende. Acha que a vida é curta? Beije-me e verá que num piscar de olhos já terei terminado – ao passo que ela se aproximava senti-me seduzido por suas palavras. – Deixe que eu te mostre o que há do “outro lado”.
– Espere – afastei-me. – Diga-me como posso matar uma idéia?
– Como matar uma idéia? Apenas a esqueça – falou em tom de deboche.
– Já tentei e não consegui.
Um vento forte soprou sobre nós, protegi meu rosto das pequenas pedras carregadas pela ventania. Morte esperou o tufão passar e eu me recompor para prosseguir:
– Idéias são coisas complexas, elas existem, no entanto não são reais, como os sonhos. Do que você quer se livrar, Andarilho?
– Por incontáveis anos viajei pelo universo, vi tantas coisas que tive que escrever um diário para guardá-las na memória, mas no fim todos acabam partindo e volto ao vazio do cosmos.
Ela amansou a voz e tocou meu rosto. Senti frio, mas parecia reconfortante.
– Se quer matar uma idéia, tem que matar seu dono. Então deixe que eu acabe com sua dor – tão próxima a face escarlate da Morte ficou da minha que pude sentir o cheiro de enxofre e ferro em seu hálito. – Não será o primeiro que acolho em meus braços pelo mesmo motivo, nem último.
– Não há outra forma de fazer isso?
Morte afastou-se, pôs a mão no manto e dele tirou um punhal. Enquanto isso senti uma presença aproximando-se de onde estávamos.
– Quer matar uma coisa? Primeiro dê vida a ela – a entidade entregou-me o punhal e apontou para quem vinha ao nosso encontro.
Voltei os olhos para o horizonte e vi quem era. Tão silenciosa que mal pude notá-la e como uma velha amiga era impossível esquecê-la. Ali encarnada estava o motivo de minhas feridas incuráveis.
Então pronunciei seu nome como se ele próprio fosse meu:
– Solidão.
No corpo idoso de uma senhora ancestral ela vinha ao meu encontro, seu longo vestido cinza balançava aos ventos daquela terra inóspita e de sua boca saía ruídos secos sem voz, mas eu sabia o que era. Ela gritava mentiras a meu respeito em um silêncio que era perfeitamente audível para mim, porém o que mais doía era que eu sabia que uma dessas coisas permanecia como verdade inquestionável.
– Sabe o que fazer – Morte disse.
Ainda tinha duvidas, mas todas elas cessaram quando vi meus olhos escuros refletidos na lâmina do punhal, voltei-me para Solidão e a velha muda continuava com seus insultos. Aproximei-me dela o suficiente para acabar com tudo e então fiz...
Deixei a arma que Morte me dera cair no chão produzindo um leve tilintar.
Deixei meus braços envolverem seu corpo idoso em um pesado abraço.
Ela lutou. Mas aos poucos seus membros frágeis se enrolaram ao meu corpo, sussurrei em seu ouvido e senti meu ombro umedecer com suas lagrimas. Ficamos ali por um instante que pareceu ser o suficiente.
Quando abri os olhos Solidão não estava mais lá. Tinha desaparecido junto de seu silêncio.
– Acabou? – perguntei.
– Não. Ela vai voltar, como eu disse não é fácil matar uma idéia – Morte respondeu. – O que disse a ela?
– Pedi perdão – virei e vi-a sorrindo.
– Entendo. E isso acabou com a sua dor?
– Acabou com a dela.
– Você é um sujeito estranho, Andarilho. Estou ansiosa para o nosso beijo – ela já se preparava para partir de seu santuário obscuro. – Agora vá, tenho muito que fazer.
– Uma pena, adoraria anotar suas histórias em meu diário.
– Até minhas histórias mais belas acabam com seus heróis mortos.
– Engraçado. As minhas também.