A Catedral

O som do velho piano ressoava pelas paredes da capela naquela madrugada silenciosa. Era tocada com maestria pelas mãos delicadas e firmes do pianista, uma melodia fúnebre e sombria que encobria o arauto da manhã.

O pianista não estava sozinho. Ao seu lado, caídos pelos bancos da igreja, jazia o que sobrara dos cadáveres de padres e freiras, mutilados e devorados pela doença de bulbos. Ele parou de tocar subitamente. Estava cansado daquela música leprosa, dedicada aqueles imundos humanos atirados ali.

Suspirou entediado, olhando os cadáveres: — Solto uma peste pelo mundo e nem assim consigo me divertir? Que existência tediosa a minha!

E nesse momento um choro irrompeu pelas portas da catedral. Um choro ressentido de pura tristeza, porém melodioso como os cantos celestiais. Era o choro de um anjo que acabava de presenciar toda a morte, o ódio e a existência sem futuro daquele demônio.

— Basta de choro! — grunhiu o pianista.

O anjo continuou chorando e velando amorosamente os corpos daqueles pobres humanos desamparados.

— O que você quer aqui? Se sabe que vai sofrer assim, por que insiste em vir olhar a desgraça?

— Porque eu não fecho os olhos para os que precisam de mim.

— Há! Que ironia! Essa já é a terceira década de mortes e doença, e só agora é que você resolve aparecer? Tarde demais! Eles não precisam mais de você. Estão mortos! Suas almas foram comidas pela praga, não há mais nada para você aqui!

O anjo olhou pela primeira vez para o pianista, com um grande desprezo estampado em seu rosto. Nada de fúria ou raiva, apenas desprezo e um tanto de pena.

— Não devia me olhar assim. É pecado desprezar o próximo. — ironizou o demônio. Mas o outro não desviou o olhar. — Não é essa a sua deixa para dizer que me ama e que quer me salvar?

— Dessa vez não será assim.

— Por quê? Finalmente percebeu que eu não valho a pena?

— Você me vale muito. Mas eles também valiam — o anjo apontou para os cadáveres —, apesar de você não acreditar muito nisso...

— Não acredito nem um pouco.

—... E quem está sofrendo agora são eles e não você. Então eu vou salvá-los, não a você.

O demônio franziu o cenho, fingindo-se indignado:

— Não me agrada perder o meu anjinho para essas coisas imundas... Afinal, por que é que você gosta tanto deles? Olhe só para isso! — ele tomou o corpo putrefato de uma freira em seus braços e rodopiou com ela algumas vezes pelo salão, depois soltou-a de uma vez ao chão, onde ela caiu com um baque surdo e sem vida. — Não têm encanto algum!

A criatura celeste se encolheu com a cena. Era como se o estivessem maculando ao invés da freira. Todo o seu corpo ardeu como chama.

— Pare!

— O que você vê neles de tão bom assim?

— São criações de Deus!

— E eu sou o quê, por acaso? — o pianista abriu os braços em forma de cruz e riu. — Ou você já esqueceu que eu já fui um anjo como você? Ainda sou uma criação de Deus também!

— Não, você não é! — o anjo finalmente demonstrou fúria. — Você é uma criação do ódio, da morte, da dor. Já esqueceu há muito tempo o que é ser parte de Deus.

— E não quero nem lembrar...

— Por que você é assim? O que há de tão errado neles para que você os odeie? — e, mais uma vez, os humanos foram apontados.

O pianista virou as costas sem responder a pergunta. Andou pela igreja, voltando ao seu piano de cauda. O anjo o acompanhou, também em silêncio. Esperou pacientemente ao seu lado, enquanto o demônio tirava uma ou duas notas.

— Você me pergunta por que os odeio? — disse o pianista subitamente. — Eu respondo da mesma forma: porque são criações de Deus.

— Não entendo...

— É claro que não entende! Você já foi controlado por Ele.

Fez-se uma pausa. E o pianista continuou:

— Quando os humanos apareceram na Terra, os anjos se dividiram, lembra? Nós, os Rebeldes, não queríamos àquelas novas criaturas, tão semelhantes a nós mesmos, mas tão frágeis e suscetíveis ao pecado. Sabíamos que elas se tornariam impuras e acabariam se voltando contra Ele, ou distorcendo Suas palavras, tanto faz. Enquanto vocês, Protetores, logo se acostumaram com os humanos e aprenderam a amá-los da mesma forma que amavam uns aos outros. — o demônio suspirou. — Nós, simplesmente, não podíamos aceitar isso.

— Por ciúmes?

— Por medo!

— Medo?! Medo de quê? — indagou o anjo.

O demônio não respondeu. Voltou ao seu piano e começou a tocar outra marcha tenebrosa. Seus dedos caminhavam tão rápidos pelas teclas que era impossível lhes acompanhar.

O anjo sentou-se ao seu lado, as asas douradas retraídas pelo pesar. Ainda olhava os humanos com carinho, mas seu coração estava dividido entre eles e o pianista nefasto.

— Sente medo de amar, não é? — perguntou, por fim, já sabendo que a resposta era positiva.

O demônio fechou o piano com fúria.

— Vá embora!

— Sabe que é verdade! Você tem medo de amar tanto uma criatura a ponto de chegar a sofrer por ela. É por isso que despreza os humanos. Porque sabe que eles ferem o Senhor com suas palavras distorcidas e é você quem sofre ao vê-Lo sofrer.

O pianista riu. Gargalhou tão alto que sua risada ribombou pelas cúpulas da catedral.

— Você, pequeno ser celestial... Você não sabe nada sobre sofrimento.

— Volte comigo para o Céu. Tenho certeza de que Ele, em sua benevolência, perdoará você. E você, então, poderá voltar a Sua graça. Poderá compreender o Seu plano e livrar-se de todas as dúvidas e mágoas...

Como se um cometa o tivesse atingido, o anjo sentiu sua face arder com a bofetada lhe foi aplicada.

— Nunca mais fale comigo sobre perdão, seu cretino!

Mas além de fúria, havia ainda algo mais naquele olhar que o demônio lhe lançara. Um lampejo de... Esperança? Dor? Desespero?

Havia uma única lágrima, que não lhe escorreu pela face, mas ficou presa ali em seus olhos até secar.

— Eu te perdoo... — disse o anjo. — E amo você, meu irmão.

O demônio se levantou do piano e virou as costas para o altar da igreja. Caminhou em direção à porta sem olhar para trás.

Estava na hora de soltar outra praga pelo mundo. Ele precisava daquilo para se recompor. Porque, por um momento, tinha sido abalado. Por apenas um momento, tinha sentido uma lânguida faísca de sentimento percorrer seu coração gélido.

Aquela faísca logo se apagaria.

Mas o anjo sabia que ela havia estado ali, mesmo que só por um momento. E isso era suficiente. Enquanto uma faísca pudesse ser produzida, havia esperança de reverter o mal.

O pianista foi embora, mas o piano continuava ali.

E os sinos da catedral haviam despertado.

Ingrid Flores
Enviado por Ingrid Flores em 22/01/2016
Reeditado em 07/04/2016
Código do texto: T5519147
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