Lembranças

Era uma noite como qualquer outra na nossa pequena fazenda. O clima estava frio como sempre é durante o inverno nas montanhas, escutávamos o barulho dos animais nos campos e o som do vento nas plantações e, como costuma acontecer quando se mora próximo a um lago, a noite estava terrivelmente nublada. Eu brincava com o cachorro da família, Cheshire, e minha irmã caçula, Alice, enquanto minha mãe começava a preparar a janta, mesmo longe nós podíamos sentir o inconfundível cheiro de seu macarrão com queijo, e nossos irmãos mais velhos ajudavam o pai a terminar as tarefas do dia. O dia começara como normalmente e parecia que iria terminar do mesmo modo, como se nada pudesse interromper a paz da nossa rotina.

Até que quando nos preparávamos para entrar em casa ouvimos o som mais tenebroso que um cachorro pode fazer, um misto de terror e medo, num ato sem pensar e motivado pelo grito de Cheshire, corri no mesmo instante atrás dele para a parte de trás de nossa casa, onde havia a cerca com a velha floresta, esta que fora sempre usada pelos nossos irmãos para tirar o sono meu e de Alice, ao chegar de princípio não vi nada, nem mesmo Cheshire que interrompera seus gritos de terror, tudo estava silencioso como se até mesmo os animais e o vento tivessem morrido de repente, a névoa parecia ter aumentado tanto que não pude ver sequer a um palmo a minha frente, com a única exceção da cerca, eu a via tão nitidamente como nas noites mais limpas, e lá eu vi, vi a visão que marcaria minha vida para sempre, uma visão tão simples e quase familiar mas que conseguia causar o terror que apenas a própria visão do inferno conseguiria, foram apenas alguns segundos em que eu e a criatura, por falta de melhores palavras, nos encaramos mas que para mim poderiam ter sido horas. Fui desperto de meu pesadelo pelo grito de meu pai mandando eu e Alice voltarmos para casa, fora uma simples corrida de alguns passos mas que para mim pareceu toda uma maratona. No mesmo instante em que entro para dentro de casa encaro uma face aflita de minha mãe "onde está Alice?" pergunta ela, eu demoro alguns segundos para entender sua pergunta, meu pesadelo ainda me perturbava, o que apenas fez com que ela repetisse a pergunta com um toque de medo agora "onde está Alice?!" "n-não sei!" respondo com a voz quase falhando, e me deparo com as faces de reprovação e medo de minha família, quase como se apenas elas pudessem dizer "você estava cuidando dela!", nesse momento um terrível misto de preocupação e culpa me abate. "Tudo bem querida, vou procura-la" diz meu pai com uma voz que traíra sua vontade de tranquilizar minha mãe "ligue para a polícia e fiquem todos longe das janelas", essas últimas palavras foram ditas como alguém que sabe o que está fazendo, como se meu pai já desconfiasse do que se tratava aquilo, nesse momento fico com medo se as histórias de meus irmãos sobre a floresta tinham algum fundo de verdade.

Nesse tempo entre meu pai sair e voltar a visão do pesadelo retorna à minha mente, mas não por completa, como se meu próprio subconsciente também quisesse esquecê-la. Toda vez que a imagem da criatura me vinha era de uma forma diferente, todas umas piores que as outras, de modo que não posso dar descrições detalhadas dela, apenas uma coisa era sempre constante, seus olhos, olhos de mais terrível escuridão, olhos tão negros como se sugassem para si toda a luz ao seu redor, olhos que causavam o terror como se todos seus maiores medos e pesadelos tomassem forma dentro deles.

Eu não vi minha face quando entrei em casa, mas quando meu pai chegara, sem Alice, entendi o porquê minha mãe ficara tão aflita ao vê-la. A face de meu pai estava pálida como a de um morto, e tinha a expressão da qual nem o veterano da mais terrível guerra conseguiria ter, nunca cheguei a perguntar o que ele viu, mas sei que fora o mesmo que eu. Ficamos no mais sepulcral silêncio, este que parecia conseguir aumentar na mesma medida que a culpa e a preocupação se abatiam sobre mim, a ideia de que o que poderia estar acontecendo com minha irmã, solta pela fazenda com tal monstro, e que isto era culpa minha me aterrorizava a cada instante. Não demorou muito para podermos ouvir o som das sirenes da polícia, esta que realizou uma varredura por toda a fazenda, mas que acabara não achando nem Alice nem a tal criatura, apenas o corpo de Cheshire preso nos galhos das árvores.

Por uma semana tentamos seguir em frente, a polícia desistira das buscas por Alice no quinto dia, a fazenda perdera todo o seu barulho, tudo era silencioso, nossas conversas se tornaram mais raras e frias, a rotina tão sagrada se tornara tediosa, era possível ver a face de sofrimento em todos nós, especialmente em minha mãe, eu e meus irmãos podíamos ouvir o barulho de seu silencioso choro á noite, e claro e a culpa e faces de reprovação para mim aumentavam a cada dia. O golpe de misericórdia para a nossa família viera no oitavo dia, quando meu pai enquanto buscava lenha na floresta finalmente encontrou Alice... Suspensa a 7 metros do chão e presa por uma corda no pescoço.

A partir desse dia tudo começou a ruir de vez, minha mãe chorava cada vez mais, e sem se importar se a ouvíamos ou não, as faces de reprovação ficaram completamente nítidas, apenas meu pai ainda tentava esconde-la, ele era o único a me dizer "o que aconteceu não é culpa sua", mas era possível sentir o peso da mentira na sua fala. Mas meu pai não teve que mentir por muito tempo, apenas dois meses após tudo isso ele fora até o lago e ouvimos um tiro de espingarda, então nunca mais o vimos. Mesmo sem nunca ter perguntado, acredito que passou pela mente de todos nós se não deveríamos ter o mesmo destino.

Durante alguns anos senti toda a culpa pela ruína de minha família, sensação aumentada principalmente pelos olhares de meus irmãos e de minha mãe. Tudo o que eu olhava me lembrava desses terríveis acontecimentos, não podia ver as árvores sem imaginar um corpo enforcado, não podia ver o lago sem imaginar o suicídio de meu pai, não podia ver minha família sem pensar no mal que eu a causei, e eu não conseguia parar de pensar nesse mal, cada vez que tentava pelo menos me distrair alguns momentos era como se eu sentisse uma sombra sobre mim, uma sombra que me puxava para meus terríveis pensamentos e me arrastava para a culpa.

A principio dei como origem de tal sombra o fato de estar rodeado por tudo o que me lembrava do meu pesadelo então dei como acabado meus tempos com a fazenda e até mesmo com o que restou da família. Mudei-me para a cidade, tentei deixar o pesadelo para trás apaga-lo da memória como meu subconsciente pareceu fazer com a criatura. Mas logo percebi que minha pequena esperança de uma vida nova era impossível, a sombra que pensei ser causada pelo que me rodeava acabou também estando comigo em todos os lugares, em todos meus momentos eu me lembrava do meu pesadelo, sua memória sempre me arrastando para o fundo de um abismo, eu não podia viver, não podia aproveitar nenhum momento, fosse ele qual fosse, pois a memória sempre estava lá me lembrando. Eu tentei procurar ajuda, mas cada suposto profissional que eu me atendia parecia não me entender, me trataram como um louco, desisti então dessa busca quando me vi com recomendações para tratamentos de choque e todos outras supostas soluções para casos sem esperança.

Então eu finalmente entendi, entendi que esse fora o real tormento a mim imposto pela criatura, seus negros olhos me marcaram com o castigo de não poder esquecer, a tortura de sempre ser lembrado de todo mal por mim causado, a culpa que me puxava para o abismo. No momento que entendi minha sombra tomou forma, na realidade ela sempre fora a própria criatura. E agora eu a podia ver, sempre no canto dos meus olhos lá estava ela, sempre também trazendo meu pesadelo de volta á vida.

Talvez a criatura tivesse alguma boa intenção no que ele realizava, nos mostrando que não podemos esquecer nada, nem nossas mais terríveis memórias, pois são as lembranças o que nos fazem e não podemos fugir do que somos. Mas agora já é tarde para pensar sobre isso, pois, meu querido leitor e talvez meu único verdadeiro amigo, eu decidi finalmente pular para o abismo que a culpa me atraía, o mesmo abismo que agora percebo que meu pai também caiu. Mas antes de minha final despedida meu leitor, eu quero que saiba e não se esqueca, o que eu vivi foi real, a criatura sempre me perseguiu e ela é real, por mais que muitos possam duvidar disso, afinal como essa carta chegou a você?

Adeus

Carta de um atormentado

William Holmes
Enviado por William Holmes em 12/01/2016
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