ATANÁSIO
"A vida é só uma ilusão
De espelhos refletindo dor
Dor que o meu sono eterno irá curar"
(Cadaveria - Mägo de Oz)
Ele se voltou para a janela. Lá fora, o sol se punha e coloria o céu com matizes de ametista e rubi.
O crepúsculo... Aquela era a sua hora predileta do dia. Talvez por remeter ao final de um ciclo em tudo semelhante à sua própria existência. Atanásio gostava de pensar na vida enquanto via o sol se pôr. Logo as primeiras estrelas viriam e, com elas, Nix estenderia o seu manto negro por sobre a terra, convidando os viventes ao repouso em seus braços.
- Por que ela não vem? Será possível que se esqueceu de mim?
A dúvida reverberava pesadamente em seu coração. Lembrou-se num instante de tantos que não mais via, já havia tantos anos. Sentiu-se subitamente tomado por um misto de saudade, tristeza e inveja. Tantos anos já haviam se passado, tantas experiências vividas e a certeza de que sua passagem já estava mais do que paga. Era como se estivesse viajando em um ônibus para algum lugar desconhecido, mas que deveria reconhecer tão logo ele se tornasse visível pela janela de onde contemplava a estrada que percorria.
Tola ilusão. Não estava em ônibus algum. A janela de onde olhava era a janela de sua própria casa. Uma casa quase tão velha quanto ele, por onde haviam passado afetos e desafetos, amores e decepções. Momentos de grande alegria alternados por enormes tristezas... Tudo parecia tão distante e, ao mesmo tempo, tão perto. Quase como se fosse possível tocar o passado com um gesto dos dedos.
O passado. Havia algo mais intrigante do que essa etapa da vida humana? Aquilo que ocupa a maior parte das nossas vidas e que, estranhamente, tantas pessoas fingem não possuir. Qual o sentido de uma existência desprovida de passado, senão fingir que se está vivo sem ter nada para se ver ao tentar olhar por cima do ombro?
Não existe vida sem passado, seja ele bom ou mau, alegre ou triste, glorioso ou ultrajante. Aliás, que são esses adjetivos senão meros preconceitos estúpidos que os humanos criam para fingir ter vergonha de ser o que realmente são?
O simples fato de lembrar do passado o angustiava. Sentia a certeza ainda maior de que não havia mais nada a se fazer. Aquela espera o angustiava enormemente. A rotina dos dias, o contar das horas, dos minutos, o nascer e o por do sol, eram a lembrança de que lhe cabia aguardar pacientemente por algo que sempre fora sinônimo de incerteza, dúvida e frustração: o futuro.
Aliás, o que era essa coisa que chamavam de futuro? Como é possível nomear aquilo que não está diante de nós e, pior ainda, como era possível que houvesse quem depositasse esperança em algo que sequer sabe se vai chegar ou como vai chegar?
Quão tola era a juventude por acalentar essas ilusões! E tão mais tola por acreditar que o futuro sempre lhe sorriria...
Não! Mil vezes a certeza do passado! A convicção peremptória e incontestável de que fora possível superar circunstâncias e estar vivo para contar a história. Isso sim era algo de que seria possível orgulhar-se.
- E se eu fosse ao seu encontro ao invés de ficar aqui esperando? Poderia ao menos telefonar e avisar que viria, ou que mudou de ideia... Isso não se faz! Onde já se viu deixar um homem na minha idade esperando desse jeito, com toda essa ansiedade?!
A ideia de sair dali e ir ao encontro dela empolgou-lhe o espírito. Sim, seria relativamente fácil achá-la. Por que não? Por que ainda se dispunha a perder tempo alimentando a ilusão de que ela viria ao encontro de um velho imprestável, que nada fizera de importante ao longo da vida a não ser contar a passagem do tempo, na expectativa de que a vida deixasse de ser tão miserável nos dias vindouros?
Essa última pergunta trouxe naturalmente a resposta para sua inquietação:
- Não... Isso não é de meu feitio. Durante oitenta e sete anos eu aprendi a esperar pacientemente. Estou velho demais para querer virar a mesa agora. Tudo que me resta é esperar, por pior e mais doloroso que isso seja... Além disso, se eu for ao seu encontro, quem me dirá que serei bem recebido? Quem dirá que ela ficará feliz em me ver? Com a sorte miserável que sempre me apunhalou a vida inteira, é bem provável que ela não só me rejeite, como eu ainda terei a desgraça de descobrir que não sou o único de quem ela se ocupa...
Mal terminou de proferir estas palavras, sentiu que a voz se embargava. Tossiu fortemente, até ao ponto de sentir dor no diafragma. Buscou o copo d’água que sempre deixava à beira da cama e esvaziou-o de um só gole. O líquido refrescou-lhe a garganta ressequida e pareceu irrigar até mesmo os pulmões, facilitando a respiração.
Mais uma vez Atanásio olhou para o poente. O sol já desaparecera por completo. A lua surgiu por entre as montanhas, um semicírculo que mais parecia um sorriso desdenhoso riscado no azul do firmamento. Sim, um sorriso de deboche. Como se o céu sorrisse da sua angústia de adolescente apaixonado à espera da amada, com quem terá a primeira noite de prazer. Olhou demoradamente para essa boca luminosa que o céu delineara para zombar dele e lembrou-se da primeira mulher que amara. Era ainda um rapazote, no vigor dos seus treze anos, quando conheceu as delícias de Eros nos braços de Bárbara, uma moça faceira e sedutora, quatro anos mais velha do que ele e que o deixou desconsolado depois de uma noite arrebatadora às margens do riacho que cortava o sítio onde vivera na juventude. Atanásio lembrava-se disso agora, sem nem mesmo saber a razão pela qual aquela lua sorridente e debochada lhe fazia lembrar da perversa jovem que, depois de saciar os seus impulsos sexuais e fazê-lo jurar amor eterno, desaparecera sem deixar vestígio.
- Bárbara... Não podia ter nome mais adequado. Você me usou e jogou fora, assim como os bárbaros faziam com as aldeias que pilhavam.
Aquela fora uma noite duplamente inesquecível. Tanto pelo enlevo que o arrebatara no clímax do prazer, quanto pela desolação deixada pelo sumiço da moça no dia seguinte.
Atanásio estava absorto nessas lembranças quando sentiu que a cama onde se sentava rangia como se alguém mais houvesse acabado de sentar-se nela. Voltou-se e viu uma mulher que bem poderia ser a ingrata Bárbara de setenta e quatro anos atrás, não fosse pela aparência jovem e bem cuidada e pelo longo vestido azulado que trajava, como se um pedaço do próprio céu tivesse sido arrancado para vesti-la.
A visitante sorriu. Um sorriso idêntico ao do céu noturno, luminoso como a lua e ainda mais belo por causa do brilho de seus olhos negros e sedutores. Como Atanásio não conseguisse articular palavra, ela indagou irônica:
- O que foi? Parece que viu um fantasma...
Um riso que brotou tímido para depois se converter em gargalhada foi a resposta do velho. Ambos riram juntos gostosamente, como se aquela frase resumisse a piada mais engraçada de todos os tempos. Quando finalmente conseguiu se recompor, o ancião disparou em tom de desafio:
- Que demora foi essa? Pensei que tivesse esquecido de mim!
A visitante olhou-o com um ar debochado e retrucou:
- Eu? Me esquecer de você? Mas que besteira é essa, Atanásio?
- Besteira? Você devia escolher melhor as palavras! Acha que não sofri todo esse tempo sendo preterido por você? Vendo todos que sempre a acompanharam, uns mais de perto, outro mais distantes, mas sempre indo com você enquanto eu ficava aqui, sonhando com o dia em que poderíamos ser só nós dois... Faz ideia do quanto o ciúme me martirizou todos esses anos?
- Ciúme?
- Sim, isso mesmo, ciúme, inveja! – respondeu o velho com ar indignado –Nunca aceitei o fato de que tantos poderiam ir com você e eu, que sempre a desejei, ser tratado com desprezo, ser deixado para trás como se não valesse nada...
Não pôde continuar. O desabafo trouxe consigo as lágrimas que contivera a custo durante tantas décadas e elas prorromperam em catadupa, como um rio caudaloso arrebentando a represa que lhe contivera o fluxo. A mulher envolveu-o afetuosamente, como uma mãe que tomasse no colo o filho incapaz de valer a si mesmo e que clamasse pelo seu concurso e proteção.
Com muito custo, Atanásio retomou o seu discurso. Esperara tempo demais para dizer as verdades que queria e não deixaria passar a oportunidade de fazê-lo.
- Todos foram com você! Amigos, parentes, vizinhos, conhecidos, estranhos, meus pais, irmãos... Até mesmo os animais de estimação seguiram seus passos e eu fui deixado para trás.
Desvencilhou-se do amplexo e, olhando fundo nos olhos de sua interlocutora, indagou de forma incisiva:
- Por que você me despreza tanto? Sou tão miserável assim ao ponto de todos poderem te seguir, enquanto eu devo permanecer aqui, nessa condição de nulidade a que nem mesmo posso chamar de vida?
Ela devolveu-lhe o olhar e disse com tranquilidade:
- Atanásio, você está sendo injusto com nós dois. Jamais o desprezei. Apenas não poderia estar com você antes da hora prevista. Você sabe que tenho milhões de compromissos, eu não paro nunca. Jamais perdi você de vista. Sempre acompanhei seus passos. Se tantos dos que eram próximos a você vieram comigo, é porque tinha de ser desta forma. Não havia o que fazer. Sei o quanto você sofreu com cada despedida e sei igualmente que planejava vir ao meu encontro. Felizmente você se deteve. Até hoje, ninguém que tenha tentado me encontrar antes da hora conseguiu realmente vir ter comigo e não queria que isso acontecesse com você também.
O velho pareceu tranquilizar-se à medida que ela falava. Sim, cada palavra era o que sonhara escutar durante tanto tempo, que não se lembrava mais do momento em que ansiara pelo fim pela primeira vez. Talvez quando fora abandonado por Bárbara e desejou que a morte o levasse para sempre, a fim de que nunca mais pudesse sentir a dor de perder quem amava ou, pior ainda, sentir que ela, a finitude, o destino final de todas as formas viventes, lhe virava as costas como a caprichosa jovem que o usara naquela longínqua noite há mais de sete décadas.
- E agora? – ele se aventurou a perguntar – Será que posso ter esperanças de que um dia iremos nos reunir?
- Por que um dia? Eu pensei que você quisesse ir comigo agora! – tornou a morte em tom de galhofa
Os olhos de Atanásio brilharam como os de uma criança ao se deparar com o brinquedo dos seus sonhos
- Isso é sério?
- E eu lá brinco em serviço? – retrucou ela com um sorriso ainda mais belo no rosto e estendendo as duas mãos para que ele as tomasse.
E então Atanásio tomou a morte por ambas as mãos e puseram-se a dançar pelo quarto. De repente, as paredes do cômodo pareceram sumir e ele se viu pairando no espaço infinito, a valsar com a sua amada imortal por entre as estrelas cintilantes daquela noite inesquecível, em que todas as agruras terrenas ficavam para trás definitivamente. À medida que dançavam, sentia que todas as dores e incômodos que o tempo lhe impusera, iam desaparecendo miraculosamente. Sentiu-se jovem de novo. Jovem e repleto de vida, como jamais fora. A morte lhe sorria como a vida jamais lhe sorrira. Um sorriso que era feito da luz da lua e de todos os astros do universo, reunidos em sua indescritível beleza naquele semblante divino.
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No dia seguinte, o corpo do velho Atanásio foi encontrado estendido sobre a cama de seu casebre. Não havia qualquer sinal de dor ou de sofrimento em seu cadavérico semblante. Apenas um sorriso indefinível e cativante, a expressão de quem encontrou a paz definitiva pela qual anseia o homem através dos séculos...