NOTTURNO

"Viverei, morrerei,

(Vivo, morro)

E você revela

(Eu te deixarei)

O sagrado e profano

Mistério da vida e da morte

Que ora perturba o meu ser

Oh, noite..."

(Notturno – Luca Turilli’s Rhapsody)

Celine olhava horrorizada para a efígie entalhada na lápide. Não podia ser verdade:

“Nikolai Yankov

* 04 – 07 – 1728

+ 29 – 04 – 1754”

Que significava aquilo? Como o nome do seu amado poderia estar ali, gravado no mármore daquela sepultura que contava mais de duzentos anos? Como era possível que a imagem daquele camafeu fosse a imagem do mesmo Nikolai por quem se apaixonara e com quem vinha mantendo uma relação tão intensa?

- Por... Por que... o seu nome está aqui? – balbuciou a estudante de música voltando-se para o rapaz.

O interpelado deixou escapar um suspiro profundo e, mordendo os lábios por um instante enquanto fitava o teto do mausoléu, respondeu por fim:

- Porque essa capela fúnebre é o local onde todos os mortos de minha família foram depositados... Incluindo aquele que saiu do palco terrestre sem deixar descendentes: eu mesmo!

Celine sentiu como se vigoroso anel de ferro premisse subitamente o seu crânio. O chão sob os seus pés pareceu sumir e o cenário ao redor, já excessivamente sombrio, tornou-se negro e impenetrável como se houvera sido repentinamente atirada em algum túnel que a levaria diretamente ao submundo. Marmóreo livor recobriu a face da jovem, anunciando que a consciência a abandonaria depois do tremendo choque que acabara de receber.

A circunstância em que os destinos de ambos haviam se cruzado fora das mais chocantes e intensas. Numa noite em que regressava sozinha do conservatório, a pé, dois sicários abordaram Celine e a arrastaram para um beco escuro. Desesperada e antevendo as sevícias sexuais horripilantes a que seria submetida, a jovem debateu-se e tentou gritar, apesar de ser vigorosamente sustida por um dos celerados. No exato momento em que a tragédia iria se consumar, a intervenção miraculosa de um completo desconhecido pôs termo ao transe horrendo. Tudo se deu muito rápido. Pareceu-lhe que alguém emergira das sombras e agarrara os dois criminosos, atirando-os contra a parede com tamanha violência que um deles tombou desacordado, enquanto o outro tentava tomar de uma arma sob a casaca para alvejar o estranho que os atacava daquela forma. Em vão. Com uma velocidade impressionante, o desconhecido tomou do braço do estuprador e o fraturou triplamente, fazendo-o guinchar como um animal no matadouro. Em seguida, aplicou-lhe um golpe tão violento na cabeça que a mesma tombou desgovernada para a frente.

Estática pelo insólito daquela situação, Celine não ousava mover um músculo. Passara do terror à estupefação e desta última novamente ao terror. Fora salva de um estupro, mas a força sobre-humana daquele salvador brotado das sombras, longe de tranqüilizá-la, deixava-a ainda mais aterrada. Se ele fora capaz de prostrar daquela forma, sem maiores dificuldades, dois facínoras, quem lhe garantia que ela não seria estraçalhada por ele, ali, naquele exato instante? Desejaria correr, erguer-se dali e fugir celeremente, mas as pernas lhe recusavam obediência.

Quando o desconhecido deu cabo dos estupradores, acercou-se dela pondo-se de joelhos e indagando de modo extremamente cortês:

- Está ferida, senhorita?

Não houve resposta. A moça estava pálida como um cadáver e suava frio. Ainda se sentia apavorada com tudo que acontecera e desejaria, de todo o coração, fugir dali, não fosse a paralisia que a acometera em decorrência do horror experimentado minutos antes. Como se não bastasse tudo isso, olhou para aquele homem inclinado em sua direção e sentiu-se fascinada com a figura que ora contemplava. Diante dela, apoiado sobre o joelho esquerdo, estava um rapaz que deveria ter alcançado no máximo o quinto lustro de existência. Alto e magro, mais se assemelhava a algum fidalgo do século XVIII, dado o porte elegante e a voz aveludada com que se dirigia a ela. Olhos de um azul profundo e triste, num rosto pálido e delicado emoldurado por uma cascata de madeixas negras em caracol, era uma visão quase que onírica. Pareceu-lhe absurdo que alguém de compleição tão frágil pudesse ter deixado fora de si os dois sicários que a haviam abordado minutos antes.

Como não houvesse resposta, ele indagou novamente, desta vez pousando-lhe a mão no ombro:

- Está ferida, senhorita? Esses vermes a machucaram?

O toque daquela mão álgida a despertou e ela recobrou o senso de realidade: estava caída num beco escuro e sendo encarada por um desconhecido que poderia muito bem molestá-la sem maiores dificuldades. Esse pensamento bastou para que ela conseguisse reaver o movimento das pernas e tentasse se desvencilhar atabalhoadamente daquele homem que a salvara, mas que bem poderia querer algo mais em troca do que apenas gratidão.

- Não! Não se aproxime! – disse por fim exasperada, tropeçando nas próprias pernas e tentando se evadir daquele sítio aziago.

O estranho pareceu não se importar com a atitude dela, limitando-se a recolher a pasta de couro onde eram guardadas as partituras e outros materiais do conservatório. Com um sorriso discreto, entregou-lhe a pasta. Celine tomou-a bruscamente e deu-lhe as costas, fazendo menção de sair correndo daquela viela fétida onde acabara de se safar, por muito pouco, de um destino infinitamente pior do que a morte.

- Lamento se a assustei, senhorita – insistiu o rapaz – Mas lhe asseguro que não pretendo molestá-la. Fico feliz que esteja bem.

- E eu lhe asseguro que não pretendo ficar aqui para descobrir isso! – tornou com rispidez.

- Se o meu intento fosse dar continuidade ao que aqueles infelizes iriam fazer, eu já poderia tê-lo feito de imediato – provocou – Não acha?

Celine estacou ao ouvir aquilo. O terror de ser submetida a um estupro voltou com toda a força e pareceu travar-lhe as pernas novamente. Ela começou a chorar baixinho, temendo que aquele pesadelo do qual acabara de se salvar por tão pouco, fosse recomeçar.

- Mil perdões, senhorita! – acercou-se o estranho demonstrando grande inquietação ao perceber o impacto que suas palavras haviam causado – Por favor, eu não tinha a intenção de ofendê-la! Mas ao ver aqueles dois infelizes tentando molestá-la, não fui capaz de me conter, eu não poderia simplesmente ficar de braços cruzados enquanto uma jovem tão formosa era convertida em objeto nas mãos daqueles demônios.

Ela volveu para ele os olhos vermelhos e, sem que pudesse atinar na razão pela qual se punha a conversar com um completo desconhecido ali, naquelas circunstâncias, respondeu com um meio sorriso:

- Não acha que o momento é um tanto impróprio para galanteios?

- Acredito que eu deveria acompanhá-la a fim de que seu trajeto se dê em segurança – respondeu o mancebo.

- Eu agradeço, mas não será necessário... Moro a apenas algumas quadras daqui.

Ele sorriu contrafeito. Era evidente que, depois de uma tentativa de estupro, a última coisa que uma moça aterrorizada faria, seria confiar num estranho e deixar que ele a seguisse até a sua residência.

- Compreendo... De qualquer forma, lamento que só tenhamos nos conhecido em uma circunstância tão funesta.

Aquela colocação produziu um efeito minimamente estranho no âmago da jovem musicista. Quem era aquele homem? Por acaso ele a vinha seguindo e ela não se dera conta?

- Como assim “nos conhecido”? – inquiriu Celine inquieta.

- Eu leciono violino no conservatório. Já a havia visto antes mas, como você estuda piano, é natural que não tenhamos nos encontrado. A minha turma encerra uma hora antes da sua. Hoje, por um acaso, me demorei mais por aqui e pude evitar o pior.

E antes que ela pudesse indagar maiores detalhes, o jovem se adiantou e fez uma vênia como as que eram executadas nos salões da nobreza européia do passado:

- Meu nome é Nikolai Yankov. Sou natural de Brno, na República Tcheca e resido na Áustria desde a infância.

Por instantes pareceu a Celine que voltara no tempo. Aquela visão de um jovem estrangeiro fazendo-lhe uma reverência aristocrática se lhe afigurou como uma espécie de Déjà Vu. O espaço sombrio daquela viela úmida e malcheirosa cedera lugar a um salão iluminado, onde aquele mesmíssimo Nikolai Yankov convidava-a para dançar o minueto. Os dois se davam as mãos e seguiam pelo salão, bailando graciosamente, absortos e enamorados, como se o mundo ao redor houvesse subitamente deixado de existir.

A musicista não saberia dizer quanto tempo durou esse estado de abstração. O fato é que, depois de ouvir o nome do seu salvador, apresentou-se igualmente. Embora custasse a crer que alguém tão jovem já pudesse ministrar aulas no Conservatório de Viena, sentiu que poderia – e deveria – confiar naquele mancebo e que, de alguma forma, os fios de seus destinos se entrelaçavam numa trama comum, desde antes daquele momento inesquecível.

- Celine... Celine Steiner – disse por fim a pianista.

Depois daquela noite, os dois passaram a se encontrar e a estreitar laços. Embora não houvesse sido apresentado aos pais de Celine, Nikolai se incumbia de escoltá-la do conservatório até em casa, todas as noites. Com o tempo, o sentimento que os uniu evoluiu para uma paixão que foi se tornando cada vez mais intensa, permeada sempre pela música. Acompanhada secretamente por Nikolai em algumas sessões especiais no conservatório, Celine aprimorou a sua performance, tornando-se em pouco tempo uma das melhores pianistas de Viena, uma verdadeira virtuose. Logrou fazer arranjos inéditos no piano, que mais de uma vez arrancaram lágrimas do público em suas apresentações. Em especial a sua interpretação do Noturno nº1 de Chopin, constante do Opus 72 e executado em E Menor, que era um verdadeiro êxtase para quem ouvia. A moça punha a própria alma em cada acorde que executava, como se a melodia do compositor polonês dissesse do inconfessável de seu próprio ser, de um recesso de seu espírito que lhe era totalmente inalcançável por outra via que não a da música.

Nikolai tornara-se não apenas o namorado, mas se fizera também um segundo preceptor no conservatório. Era comum os dois se encontrarem às escondidas, lá mesmo, para compartilhar da paixão pela música que os unia, ele ao violino e ela ao piano. A despeito de sua insistência em realizar um dueto com o namorado, o rapaz sempre se esquivava. Até que um dia ela descobriu, de forma surpreendente, que não havia nenhum professor de violino com o seu nome lecionando no conservatório. Tampouco a descrição feita por ela junto aos demais colegas e professores teve resposta satisfatória. Era como se ele simplesmente não integrasse o mundo dos vivos.

Aquela descoberta chocante deixou-a profundamente perturbada. Na noite desse mesmo dia, ela encontrou-se com Nikolai, diante da Catedral de Santo Estevão. Passava da meia-noite e a igreja já estava fechada. Extremamente agastada, exigiu saber o que estava acontecendo, quem era realmente e por que sempre evitava ser visto por mais alguém quando estava ao lado dela.

- Eu exijo saber a verdade, Nikolai! Estamos juntos há quase um ano e só agora descubro que você não faz parte do Conservatório de Viena!

O mancebo guardou silêncio. Deixou que a namorada desabafasse enquanto olhava para a lua, que naquela noite se derramava generosa sobre os céus da secular capital austríaca, qual gigantesca pérola de luz que houvesse sido subitamente projetada ao firmamento.

- Olhe para mim! – disse ela agarrando-o pela gola da jaqueta que ora envergava – Quem é você realmente, Nikolai? É esse mesmo o seu nome? Por que está fazendo isso comigo! Por quê? Você me salvou naquela noite e, desde então, é como se eu estivesse enfeitiçada! Não consigo parar de pensar em você! Até quando estou dormindo, você está presente! Por quê? Quem é você, afinal de contas? O que é você?

Nikolai olhou-a fundo nos olhos e declarou por fim, com acento enigmático:

- Eu sou aquele que você deve libertar, Celine.

- Como assim? Do que você está falando? – retrucou – Não me venha com charadas! Eu quero respostas e quero agora!

O rapaz abaixou a fronte e deixou cair uma lágrima que, apesar de discreta, tocou a mão com que Celine o sustinha. Foi o suficiente para que ela ficasse ainda mais transtornada:

- Nikolai... O que está acontecendo afinal de contas? – insistiu com a voz embargada.

Os olhos azuis do interlocutor reverberavam como se houvesse fogo-fátuo em suas pupilas. Com o peito opresso, ele sentenciou num suspiro:

- É hora de você saber a verdade sobre mim... Sobre nós e o nosso destino.

Antes que a moça pudesse contra-argumentar, Nikolai tomou-a pelo braço e embrenharam-se noite adentro.

O casal alcançou um sítio castigado pelo tempo. Tratava-se de um antigo cemitério desativado, desses que acabaram por se converter em parques com o avanço da urbanização. A necrópole era relativamente pequena, se comparada ao Cemitério Central de Viena. Certamente havia acolhido os restos mortais de antigos cidadãos e agora, praticamente abandonado, convertera-se num cenário duplamente lúgubre, uma vez que aquele campo-santo tivera o mesmo destino de tantos quantos guardara entre seus muros ao longo de décadas: a morte e o esquecimento. Uma placa de metal já carcomida pela ferrugem, logo à entrada, ocultava a identidade daquele sítio desprezado. Não obstante, o óbito daquele cemitério já deveria orçar pela passagem do século XVIII para o século XIX, a julgar pelo modelo arquitetônico da capela e de alguns mausoléus, onde se vislumbravam elementos comuns ao estilo barroco.

Um calafrio percorreu a espinha de Celine quando cruzaram o pórtico da necrópole e ela não pôde sopitar a curiosidade que crescia paralela à angústia que a consumia:

- Por que estamos aqui, Nikolai? O que você quer me mostrar?

- Você já vai saber. Por hora, apenas venha comigo.

Cortando caminho por entre túmulos castigados e valas comuns, mausoléus e ciprestes, os dois chegaram à capela do cemitério. Sem maiores dificuldades, Nikolai abriu as portas, cujos gonzos de bronze rangeram medonhamente, à semelhança de um fantasma que protestasse ao ser despertado de seu sono eterno.

Uma vez no interior do templo, o violinista conduziu a namorada a uma cripta localizada por trás do altar, guardada por um portão de ferro onde repousava um brasão de armas sustido por um leão estilizado. O cheiro acre de mofo e poeira, mesclado à umidade do subsolo, fez Celine tossir. Cinco degraus levavam ao jazigo, onde três túmulos paralelos ostentavam camafeus com a imagem de cada membro da família, incrustados em lápides de mármore.

- A última morada dos Yankov... ponderou Nikolai com acento nostálgico – Sempre achei esse lugar horrível. A superstição da minha família era tamanha que faziam questão de ter os seus restos mortais depositados logo abaixo do altar. Uma garantia neurótica de que a benção divina não lhes faltaria quando viesse o dia do julgamento final e eles devessem emergir do seio da terra para comparecer diante do Altíssimo... Que grande besteira!

Celine olhava em derredor e se perguntava o que estava fazendo ali, na calada da noite, num jazigo subterrâneo em um cemitério abandonado. Um sentimento de terror inenarrável começou a crescer inexplicavelmente dentro de si. Não se tratava do medo supersticioso comum à maioria dos viventes quando adentra um campo-santo, mas de uma espécie de pressentimento terrível de que a verdade com que iria se defrontar, faria com que desejasse estar mais morta do que os cadáveres sepultados naquela cripta. Como que em sonho, avançou na direção dos túmulos sem ao menos se dar conta da razão que a levava a fazer tal coisa. Algo em seu íntimo lhe segredava que não deveria olhar para os rostos gravados naquelas lápides, pois eles certamente lhe revelariam algo demasiado horrendo para ser aceito de bom grado no mundo dos vivos.

Mas Celine perscrutou, um a um, os nomes dos proprietários de cada campa. Quando chegou à terceira, localizada rente à parede direita e com uma imensa cruz esculpida na tampa, sentiu como se houvesse sido subitamente atingida por um raio: o rosto que viu no camafeu não era outro senão o de Nikolai.

- Como? – tartamudeou a pianista incrédula – O que significa isso?

Celine olhou novamente para a efígie e temeu que o coração fosse parar em definitivo. Tateou a superfície pétrea, removendo a poeira para poder identificar com mais clareza a quem pertencia aquela tumba. O mármore estava desgastado, mas ainda permitia ler com nitidez os entalhes do dístico:

“Nikolai Yankov

* 04 – 07 – 1728

+ 29 – 04 – 1754”

Que significava aquilo? Como o nome do seu amado poderia estar ali, gravado no mármore daquela sepultura que contava mais de duzentos anos? Como era possível que a imagem daquele camafeu fosse a imagem do mesmo Nikolai por quem se apaixonara e com quem vinha mantendo uma relação tão intensa?

- Por... Por que... o seu nome está aqui? – balbuciou a estudante de música voltando-se para o rapaz.

O interpelado deixou escapar um suspiro profundo e, mordendo os lábios por um instante enquanto fitava o teto do mausoléu, respondeu por fim:

- Porque essa capela fúnebre é o local onde todos os mortos de minha família foram depositados... Incluindo aquele que saiu do palco terrestre sem deixar descendentes: eu mesmo!

A vertigem que acometeu a jovem não pode ser aqui descrita de forma fidedigna. Celine sentiu como se vigoroso anel de ferro premisse subitamente o seu crânio. O chão sob os seus pés pareceu sumir e o cenário ao redor, já excessivamente sombrio, tornou-se negro e impenetrável como se houvera sido repentinamente atirada em algum túnel que a levaria diretamente ao submundo. Marmóreo livor recobriu a face da estudante de música, anunciando que a consciência a abandonaria depois do tremendo choque que acabara de receber. Num esforço hercúleo, ela se ergueu cambaleante e teria tombado sobre a sepultura, se Nikolai não a sustivesse a tempo.

- Celine! Celine! – repetia angustiado tentando reanimá-la.

Nikolai a levou para fora da cripta, acomodando-a num dos bancos da capela. Deitou a cabeça da moça em seu colo. Embevecido, o rapaz se pôs a contemplar o rosto da amada, pintalgado de sardas. A boca rósea e delicada demorava-se entreaberta, os olhos pequenos e muito expressivos se encontravam fechados em decorrência do desmaio, mas ele sabia que no interior daquelas órbitas se demoravam duas minúsculas pérolas azulíneas, como se o próprio céu se houvesse caprichosamente cristalizado nos olhos da amada. Acariciou-lhe as madeixas fulvas, que agora se esparramavam sobre as suas pernas qual se fossem pequenas labaredas encaracoladas. Considerou entristecido que aquela talvez fosse a última vez em que estariam tão próximos. A revelação que tanto postergara, por adivinhar nela o advento de uma separação inevitável e que certamente o esfrangalharia por dentro, agora se materializava inexorável. Quando Celine recobrasse a consciência, não lhe restaria outra alternativa a não ser revelar a verdade sobre o seu passado. E, uma vez feito isto, o destino os separaria para sempre.

Um soluço discreto brotou do peito de Yankov, a despeito de todo o seu esforço para sopitar a dor que o consumia naquele momento. O som abafado do seu pranto acabou por alcançar os ouvidos de Celine que, com certa dificuldade, tentou se sentar.

- Nikolai... O que aconteceu? Eu sonhei que estávamos num cemitério e...

- Não foi um sonho – adiantou-se ele – Você realmente viu o que viu.

Celine fitou-a aterrorizada. Se aquilo fora real, então afinal de contas, quem, o que era Nikolai? Ela ergueu-se de chofre, sentindo dificuldades de se manter de pé, no que o namorado fez menção de mais uma vez ampará-la. Desta vez, no entanto, a moça afastou-o presa de intraduzível horror.

- Não! Não me toque! – gemeu angustiada –Eu não sei mais quem é você! Eu não sei mais com quem estou falando! Não sei se isso é real ou se é somente um pesadelo sem sentido!

Nikolai encarou-a com uma expressão desolada. Agora não havia escolha a não ser revelar toda a verdade...

O rapaz sentou-se novamente no banco da capela e, com acento grave, deu início às terríveis revelações que durante tanto tempo buscara se furtar:

- Você tem toda a razão em ficar horrorizada... Eu deveria ter te contado há mais tempo, só que não via como fazê-lo. É uma longa história. Na verdade, é uma história longa e insólita. Aconselho você a se sentar, pois haverá muitos lances chocantes naquilo que vou lhe narrar. Coisas ainda mais atrozes do que o fato de você haver se deparado com o meu túmulo e estar namorando quem deveria estar encerrado naquela cripta onde estávamos até a pouco...

A jovem tomou assento ao seu lado, conservando uma discreta distância do interlocutor. Com as mãos entrelaçadas e uma expressão de amargura como nunca antes detectara em seu semblante, Celine ouviu Nikolai dizer de uma época anterior à atual. Mais precisamente, a época da dinastia Habsburgo, onde a sua família, oriunda da Boêmia, estabelecera-se nos arredores de Viena ainda nas últimas décadas do século XV.

- Como você pôde ver na lápide, eu nasci em 04 de julho de 1728 – prosseguiu com gravidade – Morri aos 25 anos, em circunstâncias que convém esclarecer com detalhes. Eu fazia parte da nobreza e, como boa parte dos aristocratas da época, dediquei uma parcela significativa da minha juventude à libertinagem. Recursos não me faltavam, tampouco status. Mas havia uma coisa que me apavorava: a ideia de morrer. A perspectiva da finitude me impelia ao prazer inebriante, ao mesmo tempo em que me fazia enxergar que nada daquilo poderia durar eternamente. Decidido a jamais deixar a morte me ceifar, percorri a Europa inteira em busca de filtros e encantamentos que me permitissem preservar indefinidamente a vida e a juventude. Numa dessas muitas viagens, conheci uma bruxa de nome Natasha. De ascendência magiar, ela era praticante de um rito especial que lhe permitia conservar o viço e beleza da juventude, graças ao hábito de beber sangue humano. Os mistérios vampíricos, como Natasha denominava a Magia Negra que oficiava, era uma prática comum aos antigos hunos, de quem ela dizia descender, e que fora introduzida por estes no continente quando da invasão liderada por Átila, o Flagelo de Deus. Não por acaso, os hunos eram tão temidos pelos antigos romanos. Os relatos da sua crueldade nada tinham de alegóricos, eram totalmente verídicos. Os tais mistérios consistiam na captura e imolação periódica de garotas virgens, a fim de sorver e banhar-se no sangue das mesmas. Natasha asseverava que apenas dessa forma eu conseguiria obter a imortalidade de que ela já usufruía. Não hesitei em fazê-lo. Sequestrei e matei dezenas de jovens, apenas para obter o seu sangue e, para minha desgraça, vi que a bruxa dizia a verdade. Logo me descobri dependente do prazer satânico que aqueles ritos me proporcionavam. Já não mais bastavam as orgias de antes, eu tinha necessidade de morte e sangue nos bacanais que agora promovia. Mais do que o sangue, eu ingeria a própria seiva da vida e esta última decuplicava minhas forças e ampliava meus sentidos, conferindo-me poderes sobre-humanos. Eu havia deixado a humanidade para trás e adentrara o território dos deuses ou, pelo menos, era o que eu supunha haver conseguido.

Celine ouvia cada palavra daquela confissão com o peito túmido de horror. Jamais supusera possível que o seu amado fosse, na realidade, um demônio hematófago que preservara a vida mediante a prática de ritos tão abomináveis como os que ora descrevia.

Nikolai continuou:

- Eu havia encontrado o elixir da longa vida a que os alquimistas medievais haviam se referido e ele era infinitamente mais poderoso do que qualquer lenda ou mito. A morte não mais seria motivo de temor para mim, que veria a passagem das eras como quem assiste aos vários atos que compõem uma ópera. Natasha me assegurava contar mais de setecentos anos, embora não parecesse ter mais de trinta primaveras. Com o tempo, o nosso vínculo se fortaleceu e eu não a via mais tão somente como a minha preceptora nos mistérios sanguinários em que me iniciara. Eu havia me apaixonado por ela e não se tratava de uma paixão qualquer, mas sim de uma paixão demoníaca, infernal como o laço que nos unia. Àquela altura qualquer sentimento, qualquer emoção, ganhara uma dimensão tão exacerbada que eu mesmo chegava a ficar com medo do que estava me tornando. Foi então que..

- Foi então que...

Um minuto de silêncio, tão denso e pesado como o ar da cripta dos Yankov, transcorreu antes que Nikolai pudesse retomar a sua narrativa. Era visível a consternação cada vez maior que o empolgava ao rememorar aquele passado tão tenebroso:

- Foi então que o pior aconteceu. A minha paixão por Natasha, pouco a pouco, foi deixando-a cada vez mais sufocada e exasperada. Decidida a romper de vez o vínculo incômodo em que aquela relação se convertera, ela partiu em busca de um novo aprendiz. Escolheu um mancebo de apenas dezoito anos, a quem transformou em seu brinquedo sexual. Inconformado com a sua rejeição e com a forma acintosa como ela tripudiava dos meus sentimentos, matei ambos a fim de beber o sangue dos dois. Estava decidido! Se eu alcançara aquele nível de poder apenas consumindo o sangue de virgens e afins, de que poder não me tornaria detentor se bebesse o sangue da minha própria mestra? Consumei o crime, mas Natasha não me deixou impune. Antes de morrer, ela condenou-me a vagar entre o mundo dos mortos e o mundo dos vivos, eternamente consumido pela sede voraz de sangue vivo. De maneira que, depois de ingerir a sua linfa vital, alucinado pela perspectiva de me tornar mais poderoso do que ela mesma, fui de imediato consumido pela minha própria perversidade... O que restava da minha humanidade foi totalmente tragado pela besta sanguinária em que eu vinha me convertendo. Eu passei a atacar vilarejos próximos, mesmo em plena luz do dia e, em pouco tempo, o ódio dos aldeões os encheu de coragem ao ponto de desfecharem uma ofensiva mortal contra o meu castelo em Brno. Meu corpo foi crivado de estacas, minha cabeça decepada e, o que ainda restou, foi incinerado. Para minha desgraça, apesar de tudo isso, eu voltei à vida. Embora o furor inicial houvesse cessado, a sede de sangue crescia cada vez mais. Eu herdara parte dos poderes de Natasha, mas me faltava maturidade para fazer uso dos mesmos sem ser completamente tragado para o turbilhão de bestialidade que rugia em meu íntimo com uma ferocidade cada vez maior. Da segunda vez em que fui morto, isto em 1754, transladaram os meus restos para este cemitério em que ora nos encontramos. A cruz que você viu sobre o meu túmulo deveria supostamente impedir a minha volta ao mundo dos vivos, já que uma série de rituais de Magia Branca foram oficiados quando do meu sepultamento nesta cripta, mas nenhum deles logrou conter-me em caráter definitivo... Exceto por um encantamento que poderia quebrar o poderio maléfico que eu mesmo conjurei sobre a minha cabeça ao me tornar um vampiro.

- E que encantamento é este? – inquiriu Celine sem mais conseguir domar a própria curiosidade.

Nikolai mordeu os lábios e fitou-a silenciosamente por alguns segundos. Em seguida, levantou-se e fez sinal para que ela a seguisse. Percebeu que a namorada hesitava. Era perfeitamente compreensível. Afinal de contas, ele acabara de revelar a sua verdadeira identidade e o fizera com tamanha riqueza de detalhes, que Celine pudera mesmo vislumbrar algumas das cenas dantescas do passado hediondo do companheiro. À medida que evocava o pretérito, Nikolai experimentava uma infinidade de emoções as mais intensas que, sem que ele se desse conta, facultava a Celine a possibilidade de enxergar cada quadro de sua narrativa. Esse era apenas mais um dos seus atributos como vampiro, ao lado da força sobre-humana, velocidade, sedução e leitura de mentes.

- Não tenha medo – pediu com um sorriso amargurado – Você é a última pessoa no mundo a quem eu faria mal.

- Espera... Você acaba de me dizer com todas as letras que é um vampiro e espera que eu te siga para debaixo da terra? É isso?

A entonação de Celine ao fazer aquele questionamento era típica de quem ainda não conseguira digerir uma verdade tão chocante e nem poderia ser diferente. Acreditar na veracidade daquelas revelações significaria romper com a própria razão, ainda que em caráter temporário e, depois de ser posta a par de tantas verdades daquele quilate, abdicar um mínimo que fosse da centelha de razão que ainda subsistia a tão duras penas, parecia ser um pouco demais. O temor de submergir completamente no abismo da loucura era mais do que justificado.

- Pra começar, que tipo de vampiro é capaz de circular livremente dentro de uma igreja? Se isso fosse realmente verdade, qual a razão para que você ainda não tenha sido destruído pelo simples fato de estar aqui?

Nikolai coçou a cabeça e declarou contrafeito:

- Celine, infelizmente a realidade é bem diferente daquilo que a literatura e o cinema se encarregaram de difundir. Nem todo símbolo sacro tem poder para repelir vampiros. Alguns integram irmandades religiosas e, não raro, chegam mesmo a fundar igrejas, a fim de poder se nutrir da seiva vital de seus prosélitos. O sangue é apenas uma das muitas formas de que dispomos para consumir a energia vital de outras criaturas, mas não é nem de longe a mais prática. Vampiros iniciantes o fazem, mas, uma vez que se tornam suficientemente aptos a fruir de seus poderes em totalidade, descobrem meios mais eficazes de se manterem. Por mais difícil que seja para você acreditar em mim no momento – e eu sei que é – fique sabendo que sou dos mais inofensivos. Há vampiros envergando hábitos sacerdotais, togas de magistratura, legislando e governando nações inteiras mediante os seus ideais depravados e perversos. Há muitas formas de se extrair vida de alguém e nem todas elas passam forçosamente pelo derramamento de sangue...

- Então... Quer dizer que há outros da sua espécie por aí? – interrogou assombrada com o teor daquelas revelações.

- Sim, há outros... Ponderou o mancebo – Alguns embriagados pela própria volúpia satânica, julgando-se deuses pelo pouco poder que obtiveram e outros como eu, que não conseguem mais suportar o peso dessa maldição odiosa.

Mais uma vez Nikolai estendeu a mão para Celine e pediu-lhe que a acompanhasse de volta à cripta. A pianista respirou fundo e o seguiu rumo ao mausoléu subterrâneo, sentindo intimamente que algo ainda mais terrível a esperava lá embaixo. De volta à capela mortuária, demandou aos túmulos e inquiriu do namorado quem eram os demais ali sepultados.

- Meus avós. A capela e o cemitério foram erguidos por eles. A transferência dos meus restos para aqui objetivava selar a minha maldição em definitivo. Os magos que executaram o procedimento levaram em consideração o fato de o vampiro sempre ter necessidade da terra onde nasceu. Aqui ambos estão reunidos: a terra onde nasci e o sangue da minha família. Os meus avós eram excessivamente religiosos. Esperavam que a piedade com que se houveram em vida pudesse ter impregnado igualmente o solo onde os seus despojos foram enterrados. Creio que isso funcionou em parte, já que o meu furor sanguinário foi drasticamente amainado em comparação com o passado.

Celine dirigiu-se novamente ao túmulo do companheiro. Tateou o camafeu e o dístico. Com um sorriso enigmático e a expressão de quem não poderia mais negar a realidade absurda em que ora se encontrava inserida, comentou:

- É tão estranho... Estar diante do seu túmulo e conversar com você ao mesmo tempo. Sendo assim, o que há dentro da tumba? – perguntou voltando-se para o namorado.

Nikolai estendeu a mão e, fazendo uso de telecinese, afastou a tampa do sepulcro que deslizou sobre a base pétrea com um gemido tétrico em razão do atrito. Estarrecida, Celine verificou que não havia nada no interior do sarcófago além de uma adaga com serpentes entrelaçadas no cabo. A lâmina brilhava feericamente na escuridão, como se fosse dotada de luz própria.

- Esta é a adaga com que fiz a iniciação vampírica e também a mesma arma com que tirei a vida de Natasha. – disse ele em resposta às indagações que Celine começava a formular intimamente – Logo depois da maldição se consumar, deixei-a de lado por ser obsoleta. A sede de sangue que passou a me devorar era tão intensa que eu me pus a sugar o sangue diretamente de sua fonte, sem a necessidade de utensílios outros que não os meus próprios caninos.

- E por que você ainda a conserva aqui? - quis saber a musicista.

- Porque ela é parte do encantamento que pode pôr um fim à minha maldição – declarou o redivivo.

Por um instante Celine imaginou que Nikolai a mataria ali mesmo, fazendo uso daquela arma amaldiçoada com que abdicara da condição humana para se tornar um demônio sugador de sangue. O brilho misterioso daquela adaga...Quanto daquela reverberação luminosa não eram as lágrimas de ódio e desespero de incontáveis vítimas que, provavelmente, ainda se encontravam ali? Nikolai aproximou-se mais enquanto ela se mantinha absorta naquelas elucubrações. Por um brevíssimo momento, pôde sentir aquela lâmina fria a lhe penetrar a carne e dar passagem a uma cascata rubra de sangue, enquanto o seu amado a bebia em lúbrico êxtase. Estranhamente, porém, nada disso lhe causava a mais leve sombra de temor. Engolfou-se nesse devaneio mórbido até que a mão do companheiro lhe pousou no ombro chamando-a de volta à realidade.

- Você me perguntou sobre o encantamento... Iniciou o mancebo com voz vacilante – Pois bem! Ele consiste em apunhalar-me o coração com essa mesma adaga que utilizei para tomar a vida de tantos inocentes. Mas, para que a maldição possa ser realmente desfeita, é necessário que eu encontre o mesmo fim que dei à minha mestra: devo receber a morte das mãos de quem for capaz de amar-me!

As últimas palavras fizeram o sangue de Celine gelar. Não! Era impossível! Ela jamais seria capaz de fazer tal coisa! Aquilo tinha de ser tão somente uma piada cruel!

- O quê? – gemeu a jovem presa de incoercível angústia – Você está brincando comigo, não é Nikolai? Isso... Isso não pode ser verdade! Você espera que eu...

Os olhos do rapaz se aljofraram de pranto ao ver a sua hesitação.

- Celine... Balbuciou com a voz entrecortada – Você é a minha única esperança! Por mais de duzentos anos eu tenho vagado na fronteira entre os dois mundos, devido às muitas atrocidades que cometi. Conhecer você foi o único lenitivo que eu tive para a angústia inenarrável que experimento desde que me desgracei desta forma. O seu amor salvou-me do demônio em que me converti. Só ele pode salvar-me de voltar a essa mesma condição e perder totalmente o último vestígio de humanidade que ainda restou em mim!

- Não! – protestou a jovem chorosa, abraçando-se desesperada ao amado – Não! Mil vezes não! Eu não posso viver sem você! Desde aquele dia que tinha tudo para ser sinônimo de horror, mas que se tornou um marco de felicidade, eu descobri o amor ao seu lado! Eu jamais poderia erguer a mão para quem me salvou duplamente a vida!

Nikolai abraçou-a igualmente soluçante. A cena era tão pungente que desafiava qualquer convenção do mundo dos vivos ou dos mortos, por mais sagradas que estas mesmas convenções porventura viessem a ser. O amaldiçoado aristocrata do século XVIII finalmente encontrara o amor nos braços de uma jovem pianista do século XX que, para infelicidade de ambos, também era a única capaz de libertá-lo daquela condição tão miserável. Para Celine, matar com as próprias mãos o amor de sua vida, era absolutamente impensável. De bom grado seria capaz de rasgar o próprio coração com aquela adaga e oferecê-lo, como uma vítima sacrifical faria a uma divindade cruel, mas... apunhalá-lo? Nunca! Mil vezes a morte a uma vida sem Nikolai do seu lado!

- Deve haver outro jeito! – aventurou-se ela forçando um sorriso de confiança através das lágrimas – Você... Você poderia me tornar igual a você! Assim poderíamos passar a eternidade lado a lado! Eu não me importo com o destino que terei no além-túmulo, desde que seja com você! Eu aceito sofrer qualquer punição, qualquer castigo, desde que possamos ficar juntos!

O vampiro desvencilhou-se da amada e levou o rosto às mãos, evidenciando o desespero que o empolgava.

- Celine, por Deus! – bradou desconsolado – Não me peça uma coisa dessas! Você não faz ideia dos horrores que experimento! Padeço fome, frio, sede... Sou acossado a buscar sangue mesmo contra a minha vontade! Por duas vezes meu corpo foi destruído e mesmo assim a morte me rejeita! Dia após dia, ouço o eco das vozes de minhas vítimas a me amaldiçoar e contemplo as suas faces congestas de dor e ódio a me acusar, enquanto exibem os estigmas sanguinolentos da minha perversidade! Sequer tenho o direito de dormir, pois quando fecho os olhos, revejo todas as atrocidades que pratiquei e a sede de sangue retorna decuplicada! Você não é capaz de imaginar a pungência do meu dilema: se não beber sangue, toda a bestialidade que consegui conter após décadas de sofrimento, vem à tona como se um vulcão fosse rebentar em meu peito! De maneira que eu busco o sangue de animais ou de malfeitores apenas para aplacar a sensação horrenda que me atormenta... Mas eu não sei até quando serei capaz de resistir a todo esse horror. Temo perder por completo a consciência e sucumbir à tentação de me tornar um desses parasitas horripilantes de que lhe falei antes, caso a ardência dessa volúpia monstruosa fuja novamente ao meu controle...

- Eu não me importo de partilhar toda essa dor com você, meu amor! – volveu a jovem como se estivesse fora de si – Faça-me igual a você! Torne-me uma morta-viva! Eu partilharei da sua desgraça com o coração alegre por mitigar o seu sofrimento! Qualquer coisa é melhor do que não ter você ao meu lado!

- Você não entende? – bramiu angustiado caindo de joelhos – Isso não é como nos contos de terror! Para se tornar uma vampira, você precisaria fazer o mesmo que eu fiz! Você teria de matar inocentes a mancheias e locupletar-se com o seu sangue! Precisaria descer ao grau mais vil da abjeção, ir onde até mesmo os próprios demônios teriam pudor de ir, por ser o nível supremo da hediondez humana! Você precisaria ser tão ou mais cruel do que eu fui! Acha mesmo que, depois de tudo isto, seria possível conservar a sanidade e a clareza de propósitos com que você se lançaria a uma empresa tão nefanda? Não, Celine... Não há nada de belo ou de romântico na minha condição de morto-vivo. Eu não sou mais capaz de tolerar esse suplício, sobretudo porque você me fez perceber que eu ainda era capaz de amar e, em nome desse mesmo amor, poderia praticar atos de nobreza como nunca havia sido capaz de praticar em minha vida pregressa! Você me fez enxergar as possibilidades que existiam para mim e que desgracei completamente por causa da minha loucura narcísica... Agora só me resta desaparecer para sempre, antes que eu me converta definitivamente no demônio que era antes e que tanto me envergonho de haver sido.

- Mas você me salvou naquela noite! – insistia Celine – Você pode usar os seus poderes para a justiça! Isso não poderia servir como penitência pelos crimes de antes? Se ao invés de apenas saciar a sua sede de sangue, a utilizasse para livrar o mundo daqueles que você mesmo disse que o vampirizam, isso não o libertaria da maldição?

Ele balançou a cabeça negativamente, declarando com a voz repassada de amargor:

- Seres da minha espécie não são capazes de fazer frente a esses parasitas. Na verdade, eles costumam nos devorar para amplificar o seu poder, ou nos usar como cães de caça, uma vez que a razão nos haja abandonado por completo. Se eu tentasse combatê-los, apenas os tornaria cientes da minha existência para logo em seguida ser convertido numa marionete. Não duvide do que eu disse antes, Celine. Há vampiros liderando países, mas o seu poder, assim como o de qualquer um de nós, é determinado por aqueles que se deixam seduzir. Mesmo que me fosse dado combater seres dessa envergadura, a multidão que lhes serve de gado os traria de volta. O laço vampírico é uma via de mão dupla, onde parasita e hospedeiro fruem de um prazer sado-masoquista no conúbio que sustentam. Por que acha que ninguém mais além de você foi capaz de me ver até hoje? Foi a sua vontade de estar ao meu lado que criou o nosso vínculo e que também impediu que eu enxergasse em você apenas mais uma reserva de plasma sanguíneo para me manter. Em mais de duzentos anos arrastando o jugo odioso dessa maldição, você foi o único ser humano capaz de olhar para mim com benevolência e de me amar como ninguém jamais o fez antes.

- Mas isso só aconteceu porque você se mostrou a mim! – redarguiu a musicista inconformada – Se não fosse a sua intervenção naquela noite, provavelmente eu não estaria mais entre os vivos! A forma como você surgiu, a sua presença constante, sempre me acompanhando e guiando, tudo isso faz de você alguém impossível de não ser amado, Nikolai... Eu não vou suportar continuar vivendo sem você!

O imortal ergueu-se e envolveu-a em carinhoso amplexo, deixando que a amada desse livre curso ao pranto. Desde o princípio ele sabia que seria intolerável para ela tomar conhecimento da verdade, mas não havia alternativa. Celine era a única capaz de impedir que ele submergisse por completo no torvelinho de insanidade que o devorava e que ele sabia, cedo ou tarde, recrudesceria a um nível que seria impossível de manter sob controle.

- Por que eu? – interpelou a garota olhando-o com uma expressão onde se mesclavam ternura e mágoa – Por que você me escolheu para isso, se sabia que eu iria acabar amando você com todas as minhas forças? Qual a razão disso tudo acontecer? Não é justo nos amarmos tanto e não termos o direito de continuar juntos!

Um soluço extremamente doloroso interceptou-lhe a fala. Celine voltou a agarrar Nikolai desesperada, como um náufrago o faria à tabua de salvação em meio ao mar revolto. Ele afagou a cabeleira ruiva da amada e, depositando em sua fronte um beijo doce e cálido, respondeu:

- Porque só o amor é capaz de libertar o homem das cadeias tenebrosas da iniquidade. É justamente por me amar como me ama que você pode me libertar deste inferno onde padeço por mais de dois séculos. Se você não o fizer, logo me tornarei incapaz de discernir o certo do errado. É justamente porque ainda posso evitar o pior que lhe peço isto.

E antes que ela se contrapusesse aos argumentos que levantava, tomou do punhal e entregou-lhe o cabo, apontando a lâmina para o próprio coração.

- Eu não faço ideia da razão pela qual o destino decretou que nos conhecêssemos apenas para isto, Celine... Mas saiba que, ao seu lado, fruí da maior felicidade que jamais supus possível a um mortal, ou mesmo um imortal – disse com um olhar inesquecível – Quem ama é capaz de libertar a quem se ama, ainda que isso signifique curtir a dor da solidão em troca da felicidade do outro...

E abrindo os braços com um sorriso, declarou:

- A sua felicidade será também a minha, para sempre, meu amor!

A moça ergueu para ele os olhos rasos d’água, desabafando:

- Nenhuma felicidade será possível para mim sem estar ao seu lado, Nikolai!

- E nenhuma felicidade me seria possível se eu viesse a te fazer infeliz, Celine. Ainda que fosse por um único segundo – tornou ele imperturbável.

Trespassada de dor com aquela postura inquebrantável do amado, Celine compreendeu que não havia mesmo outro caminho para se trilhar. Inconsolável, atirou-se nos braços de Nikolai e, enlaçando-lhe o pescoço, premiu em seus lábios o beijo mais apaixonado e ardente de toda a sua vida. Um beijo que sintetizava a força avassaladora do sentimento que os unia e que desafiava todas as leis da vida e da morte. Uma lágrima discreta rolou pela face do desventurado imortal, dizendo do quão dilacerante era para ele aquela despedida, bem como da felicidade que sentia em saber-se tão amado. Apenas ali, no recesso sombrio da morada dos mortos, decorridos mais de dois séculos sobre a tragédia que o convertera em um amaldiçoado, Nikolai lograra compreender a intensidade do amor e experimentava uma paz que jamais supusera possível em vida, mas que encontrara na morte, a despeito de todas as imensas agruras por que passara no transcurso implacável dos evos. A lágrima deixou o seu rosto e tocou a lâmina da adaga, fazendo-a cintilar ainda mais.

- Eu te amo! – murmurou a pianista com um acento repleto de ternura – E vou te amar pra sempre! Até terminarem os meus dias sobre a terra e para além deles!

- Eu te amo! – repetiu Nikolai igualmente enlevado – Como jamais amei ninguém antes e pela eternidade que me resta!

De olhos cerrados e frontes encostadas, o desditoso casal chorou em uníssono o luto inevitável que se avizinhava. Agora, chegara finalmente o instante supremo. Celine deveria fazer o que lhe cabia, por mais doloroso que fosse. Lentamente, Nikolai desprendeu-se da amada e abriu os braços, enquanto erguia os olhos para a abóbada da cripta, como se buscasse divisar o céu estrelado para além daquelas lajes. Um sorriso de tranquilidade e de paz se desenhava em seus lábios descorados.

Ainda cabisbaixa, Celine soluçava. As lágrimas banharam a lâmina da adaga e as reverberações luminosas ganharam uma intensidade ainda maior, como se ela trouxesse entre suas mãos a claridade da própria alvorada. A luz se fez cada vez mais intensa e acabou por se espraiar pelo mausoléu numa fulguração sobrenatural que devorou completamente as trevas presentes na câmara subterrânea.

Nikolai compreendeu de imediato que as reações ensejadas pelas lágrimas de sua amada decretavam o momento supremo.

- Faça, Celine – ordenou com doçura – Deixe a luz do seu amor dissolver os grilhões que aprisionam o meu coração.

A pianista respirou fundo e cerrou os olhos, contendo a muito custo o pranto que insistia em brotar. Com um único golpe, direto e certeiro, enterrou a lâmina até o cabo no coração de Nikolai. A convulsão luminosa que já vinha ganhando proporções cada vez maiores, agigantou-se como se um pequeno sol fosse surgir ali mesmo para dissolver a capela mortuária e todo o cemitério no seu amplexo lucífero. Involuntariamente, Celine tentou proteger os olhos daquela luminosidade tão intensa erguendo as mãos contra o rosto. Sem que pudesse explicar a razão por trás disto, divisou nitidamente a silhueta de Nikolai no meio daquela fulguração, como se estivesse diante de uma tela de cinema. Não viu a adaga cravada em seu peito. O que viu foi a aparência que ele deveria ter quando dos longínquos dias do século XVIII, envergando as indumentárias características da época. No meio da luminosidade que preenchia a cripta, julgou divisar um cenário em tudo semelhante a um palacete, onde o namorado parecia discutir acaloradamente com uma mulher trajada de vermelho.

Sim... Era Nikolai, não havia dúvidas. Ele parecia extremamente alterado e acusava a mulher de o haver abandonado. A julgar pelo teor da altercação e pelas informações que obtivera do namorado antes, alguém havia sido morto... Um rapaz. Ao tomar conhecimento do fato, percebeu que a interlocutora avançava furiosa para ele, que a atirou ao solo com um violento safanão. Em seguida, viu um objeto brilhar em suas mãos e reconheceu prontamente a mesma adaga que acabara de cravar no peito do amado. Nikolai enterrara a arma fatal no coração da mulher e ela pôde ouvir nitidamente a sua voz sibilante de fúria, sentenciando-o a um destino infinitamente pior do que a morte. As últimas palavras, contudo, chamaram-lhe especialmente a atenção:

- Matas-me pela tua paixão doentia... E pelas mãos de quem amas também haverás de morrer! E até que este dia chegue, hás de vagar entre os vivos e os mortos sem que jamais encontres paz, maldito!... Que o amor seja tua desgraça por toda a eternidade! Aquilo que mais buscarás e que, quando finalmente alcançares, escorrerá por entre os teus dedos como o meu sangue que ora vertes! Sangue que buscarás alucinado para aplacar a tua sede, sem que esta jamais se sacie!

Uma dor lancinante atingiu o peito de Celine, como se lhe fosse dado experimentar a mesma agonia da feiticeira magiar ao ser apunhalada. O que doía, no entanto, não era a arma enterrada em seu coração, mas sim as palavras com que Natasha condenara Nikolai à morte-vida. Não saberia dizer porque, mas sentia que a bruxa agonizante também o amava e que o ódio com que o condenava naquele momento, não era capaz de sepultar o amor que sempre sentira por Nikolai, mas que nunca tivera coragem de admitir para si mesma e nem para ele.

Depois de proferir a maldição, Natasha caiu de joelhos e arrancou a adaga do coração, lançando-a aos pés do mancebo. Uma torrente de sangue jorrou do ferimento e ela viu, horrorizada, o namorado dobrar-se sobre o corpo agonizante da feiticeira para beber o líquido rubro diretamente da fonte. Enquanto ele sorvia alucinado a seiva vital de sua antiga mestra, a cabeça da morta pendeu inerme para trás e Celine constatou, num assomo de indescritível terror, que o rosto de Natasha não era outro senão o seu!

Um grito de pavor lhe morreu na garganta ao descobrir a verdade terrível que envolvia o seu destino e o de Nikolai. Sim, agora tudo estava claro. Natasha renascera como Celine na era atual, justamente para desfazer o vínculo maldito forjado no passado. Da mesma forma como iniciara Nikolai nos abomináveis ritos vampíricos dos hunos e o condenara a sobreviver como um parasita hematófago, ela tinha de quebrar aquela corrente de desgraça, em nome do amor que jamais admitira para si mesma. O mesmo amor que agora, no avatar de Celine, a obrigava a libertar o amado da odiosa injunção a que o sentenciara no passado, em nome de um capricho perverso e condenável.

Pouco a pouco, a luminosidade foi decrescendo. Estava de volta à cripta dos Yankov, onde divisou Nikolai se esvanecendo lentamente. A mesma luz que brotara da adaga e que consumira por completo a fatídica arma, agora irrompia dele em todas as direções, ao mesmo tempo em que o seu invólucro físico se dissolvia num montículo de cinzas sobre o chão do jazigo. A musicista caiu de joelhos, sentindo que as suas forças se esvaíam lentamente depois das emoções tão arrebatadoras que aquela noite lhe trouxera. Num último esforço, tentou balbuciar algo, mas a língua lhe recusou obediência. Mentalmente, indagou do amado porque não lhe revelara toda a verdade desde o princípio.

- Porque eu também não sabia... Respondeu ele telepaticamente – Apenas agora, quando a mesma cena de dois séculos atrás se repetiu, é que tudo ficou claro para mim. A atração que me endereçou a você, a força do sentimento que nos uniu... Tinha raízes naquela mesma época. De alguma forma, parece que a Justiça Divina castigou a nossa petulância e decidiu que nos reencontraríamos para pôr um fim a tudo isso...

Ela cerrou os olhos por um momento e duas lágrimas correram discretas. Apenas a cabeça de Nikolai ainda não havia sido totalmente devorada pela luz, ao passo que o restante do corpo, completamente pulverizado, acumulava-se sobre o assoalho como a areia escorrida de uma ampulheta. Celine sabia que aquele era um adeus definitivo. Mesmo assim, atreveu-se a perguntar:

- Será que ainda nos encontraremos novamente?

Silêncio seguiu-se a esta indagação. Um breve intervalo de tempo, não mais que alguns segundos, mas que para Celine se afigurou uma verdadeira eternidade, fazendo-a crer que Nikolai partira para sempre.

- Talvez... Quem sabe? – ponderou o ex-vampiro melancólico – O mais provável é que eu desapareça das suas lembranças para sempre, já que o nosso vínculo de maldição foi desfeito.

Aquela informação fez o coração de Celine pulsar descompassado! Desaparecer? Como assim? Não bastava a separação, ela ainda perderia o direito de guardar nas suas memórias a lembrança do amor mais terno que já vivera? De um amor que atravessara séculos para acontecer naquela era e que terminara de forma tão trágica? Diante dessa possibilidade, ela reuniu as últimas forças e tentou avançar em direção ao que ainda restara do amado, mas sentiu que alguma força invisível lhe obstava os movimentos.

- Eu não quero esquecer você! – protestou lacrimosa – Você foi tudo para mim, Nikolai! Por que não posso preservar você nem mesmo nas minhas memórias? Isso não é justo!

Não pôde continuar. O pranto embargou-lhe a voz e fluiu caudaloso, no exato instante em que o rosto do aristocrata redivivo dissolveu-se no ar, tragado pela luminosidade.

- Nikolai! Nikolai! – bradou desesperada erguendo as mãos para o vazio – Não me deixe! Não me abandone, meu amor!

Um rócio delicado tocou-lhe a fronte e ela ainda pôde ouvir a voz do amado a ressoar na acústica de sua alma: “Adeus, minha adorada. Amor de tantas vidas vividas em uma só. Amada Celine. Amada Natasha. Que o nosso amor ecoe através das eras em cada nota e em cada melodia que executares.”

Por instantes Celine julgou ouvir ao longe os acordes do Noturno nº 1 de Chopin, como se a melodia do compositor polonês que tanto apreciava, atravessasse as dimensões e se convertesse no réquiem daquela separação tão pungente. No momento em que o clímax da peça se concertava, intenso clarão se propagou dentro do recinto, sumindo para mais uma vez dar lugar as trevas que dominavam aquela capela mortuária. Profundo e mortal silêncio se abateu sobre o jazigo, enquanto Celine tombava desfalecida sobre a ardósia fria do mausoléu.

--------------------------------------------------------------------

- Onde estou? – perguntou assustada ao se dar conta de que não se encontrava em seu quarto.

- Ah, a senhorita finalmente despertou. Fico aliviado que esteja bem.

Quem assim falava era um simpático ancião de barbas brancas. Celine ergueu-se do banco onde estava deitada sentindo dores por todo o corpo e viu que se encontrava em alguma espécie de igreja. A julgar pela aparência mal-cuidada, o lugar deveria estar abandonado há um bom tempo.

- Quem é o senhor? Como vim parar aqui?

- Meu nome é Johann Schutz, sou o responsável pelos jazigos perpétuos daqui. Mesmo com quase duzentos anos de desativação, algumas famílias ainda resistem a transferir os restos mortais de seus entes queridos para o Cemitério Central de Viena. Alguns até mesmo costumam visitá-los à noite, mas é a primeira vez que um visitante decide pernoitar aqui na capela – disse com um discreto sorriso.

- Cemitério? – repetiu inquieta – Por que eu estou num cemitério?

O velho olhou-a com estranheza e retorquiu:

- Com todo o respeito, senhorita... Mas acho que eu é que deveria lhe fazer essa pergunta. A princípio, quando a vi adormecida aqui, pensei que fosse algum daqueles jovens malucos que costumam invadir cemitérios na calada da noite para fazer sabe lá Deus o quê...

- Não sou uma gótica, se é isso que deseja saber – disse Celine cada vez mais intrigada – A última coisa de que me lembro é de ter ido à Catedral de Santo Estevão e logo em seguida de ir para casa.

- A senhorita é sonâmbula? – indagou Johann.

- Não... Pelo menos não que eu saiba – disse levando a mão à cabeça e sorrindo desconcertada – Mil perdões, herr Schutz. Meu nome é Celine Steiner. Sou estudante de piano do Conservatório de Viena. Gostaria muito de poder responder satisfatoriamente às suas perguntas, mas acho que estou tão surpresa quanto o senhor...

Honestamente, não faço ideia de como vim parar aqui. Sequer sabia da existência desse cemitério, mas fico feliz que tenha sido o senhor a me encontrar ao invés de um malfeitor.

Johann percebeu que seria inútil tentar investigar a razão daquela moça estar ali. Ao longo dos muitos anos em que vinha trabalhando na necrópole, já havia se deparado com coisas as mais insólitas e aquela não era, nem de longe, a mais absurda delas. Estava afeito ao incomum, ao extraordinário. Na verdade, achava divertido o seu trabalho justamente por não ser algo tedioso e considerava uma tolice as pessoas temerem os campos-santos. Algumas das histórias mais incríveis que vivera e que costumava compartilhar com os netos haviam nascido naquele ambiente. Esta a razão pela qual ele não se importou nem um pouco com o fato de encontrar uma garota adormecida num dos bancos da igreja, quando qualquer um poderia ter chamado as autoridades ou simplesmente corrido com a intrusa do templo.

- Também digo que é um alívio encontrar uma jovem tão educada ao invés de algum vagabundo que tenha vindo depredar os túmulos. Mas... A senhorita é musicista? Então talvez tenha vindo aqui atraída pelos rumores sobre o jazigo subterrâneo dessa capela. Imagino que poderia render um bom enredo para uma ópera – declarou risonho o jardineiro.

- Que rumores? Que jazigo? – questionou Celine.

- Dizem que um dos defuntos sepultados no jazigo por trás do altar seria um vampiro. Até mesmo alguns desses... Góticos, como a senhorita disse, já tentou entrar no mausoléu, mas não teve êxito. Seja lá como for, os portões só podem ser abertos por mim, que tenho a chave de acesso. Vez por outra me perguntam algo sobre isso, veja só que besteira – e riu ruidosamente – Onde já se viu vampiros sepultados em capelas? Todo mundo sabe que essas criaturas, se existissem de fato, jamais ousariam pôr os pés numa igreja!

Aquela menção a vampiros, jazigos subterrâneos e igrejas despertou a curiosidade de Celine. Sem que pudesse atinar para o porquê, inquiriu de Johann se poderia levá-la até o tal jazigo. De muito bom grado, o jardineiro a conduziu ao referido mausoléu. Um portão de ferro com um brasão de armas entalhado separava a entrada da cripta da superfície.

- Três tumbas... A da esquerda e a do centro pertencem a dois antigos fidalgos que ajudaram a erguer essa capela e o cemitério – informou o velho apontando para cada um dos sepulcros – Já a de lá, é a que dizem ser do suposto vampiro. Lorotas do povo! O rapaz era apenas neto dos dois fidalgos ao que parece, e a família fez questão de deixá-lo aqui, sabe lá Deus por que...

Celine acercou-se da tumba em questão e olhou fixamente para o camafeu na lápide. Pertencia a um jovem de vinte e cinco anos, airoso e sedutor, que falecera em meados do século XVIII. Nikolai Yankov fora o seu nome. Tateou o retrato como se buscasse o rosto do mancebo. Uma melancolia indescritível se apossou da pianista, fazendo-a marejar os olhos enquanto perscrutava os dados constantes no mármore. Preocupado com aquela reação, Johann se aproximou da musicista e indagou afável:

- Senhorita, algum problema? Está se sentindo mal?

Ela enxugou as lágrimas, surpresa com aquela reação tão inusitada e respondeu com um sorriso tímido:

- Não... Não é nada. Apenas uma sensação estranha... Como se eu houvesse esquecido algo muito importante para o meu coração.

E voltando-se uma última vez para o camafeu murmurou:

- Nikolai Yankov... Gostaria de ter conhecido você.

Alan Thanatos
Enviado por Alan Thanatos em 31/08/2015
Reeditado em 11/10/2015
Código do texto: T5365922
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2015. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.