Exilado do Paraíso

Esse conto é uma grande metáfora sobre bipolaridade e pensamentos depressivos.

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Faz dias desde que vi o Sol pela última vez. A Noite não quer cessar. Não há regras temporais nesse caos. Nunca é possível prever em que data o Dia pode aparecer, muito menos saber por quanto tempo vai permanecer. A Noite pode durar semanas – o menor período negro que presenciei foram três dias. Mas alguma hora chega a luz solar para animar. Porém, a claridade sempre persistiu menos que a escuridão nesse lugar. O Sol, então, normalmente, mantem-se no céu por apenas algumas horas.

A Noite é perigosa. É nesse período que todas aquelas criaturas repugnantes – os demônios – saem de suas tocas e infernizam as ruas da cidade. Nós – os anjos – entramos diversas vezes em batalhas contra eles. Porém era muito difícil nossa casta vencer essas lutas. Afinal, além de estarem em maior população, os demônios são mais poderosos – essas escórias possuem todo tipo de arma, para danos físicos e psicológicos. É preciso se esconder para não ser morto ou capturado por eles.

Cá estou eu, portanto, refugiado em uma das milhares de residências vazias da cidade. Esperança está calada como um rato. Olho pela janela, observando se não há demônios há vista. Nada. Não corremos perigo.

Sento-me à mesa da cozinha para tentar pôr de volta as penas – que estavam caindo em grande quantidade – em minhas asas. Todos os anjos perderam seus poderes no dia da Grande Queda, e ficamos extremamente feridos. Desde então nossas asas começaram a se depenar.

O que mais sinto falta, depois do Paraíso, é de poder voar. Tocar nas nuvens, apostar corrida com os outros anjos, ir para todos os tipos de lugares em um deslocamento rápido e fácil... Deus, como era magnífico... Deus, por que você tirou isso de mim?

Nunca soube o porquê Deus nos expulsou do Paraíso – nem mesmo sei se foi Ele. Mas o que aconteceu eu lembro todos os dias desde então. Estava voando pela incrível Planície do Alfa quando minhas asas param repentinamente e fui puxado para baixo por uma força monumental. Nem mesmo vi o que ocorreu. Quando abri os olhos, notei a grande cratera que tinha sido formada com minha queda. Meu corpo não doía. O sofrimento foi por perceber que tinha sido banido do Paraíso.

Não havia motivos para eu ser despejado. Sempre agi de acordo com as leis divinas, convivia bem em sociedade – não havia desentendimentos com outros – e não causei danos a ninguém. Não aceitava – e ainda me recuso – ter sido expulso de algo que eu amava.

Porém, logo descobri que eu não fora o único a ter tido relações celestiais rompidas. Uma quantidade gigantesca de anjos foi expelida do Paraíso – sem motivos, também – no mesmo dia. Tempos depois conversei com um demônio que disse ter presenciado a chuva de anjos caídos e soube que nomearam o evento de Grande Queda.

Os anjos despencaram todos separadamente. Contudo, nós fomos nos encontrando com o tempo e, então, foram formadas várias comunidades angelicais pela cidade. Eu, no entanto, não conseguia me encaixar nessas sociedades – participei de várias, e sai de todas. Nenhuma deles se assemelhava ao Paraíso. Os anjos já não eram mais os mesmos – alguns, inclusive, juntaram-se aos demônios. Então, na maior parte do tempo desde que caí, eu caminho solitário por aí. Entretanto, as comunidades que se estruturaram, de qualquer forma, acabavam sendo atacadas e destruídas pelos demônios – que capturavam os anjos. Nunca encontrei uma que prosperasse – todavia, os boatos de que haviam algumas corriam pelos ventos.

Enfim termino de pôr minhas penas de volta às asas. Está uma merda. Mas eu pretendo manter minhas lembranças do Paraíso vivas.

– Você está acabado!

– E o que você vai fazer, seu bosta?

– Nada, você não é capaz! – ouço risadas.

– Você está sozinho!

Com esses gritos de excitação – e outros, também ofensivos – vindos de fora da casa, vou até a janela ver o que estava acontecendo. Um bando de demônios está passando pela rua da casa, jogando pedras para os lados para quebrar as janelas das residências. Escondo-me rapidamente para que eles não me notem e sigo sorrateiramente ao segundo andar para me juntar a Esperança.

Esperança é, também, um dos anjos caídos da Grande Queda. Encontrei-a enquanto fugia de um grupo de demônios que me perseguia. Ela estava caída na rua, desmaiada – suas asas já haviam perdido metade das penas. Peguei-a no colo e levei para o local mais próximo que pensei ser seguro. A gangue dos demônios passou por ali, sem sucesso em me localizar.

Precisei cuidar dela até mesmo depois que ela despertou. Logo quando encarei os olhos dela, notei que também estava fragilizada por ter sido expulsa do Paraíso. Fomos nos conhecendo através do tempo e descobri que tínhamos o mesmo desejo de voltar ao Paraíso. Reparei, além disso, que a queda afetou Esperança tanto fisicamente como emocionalmente, pois ela não suportava de forma alguma ficar longe daquele lugar maravilhoso, o que a tornou fraca.

Visto essa fragilidade, achei que seria bom eu tomar conta dela. Por conta disso, Esperança sempre me viu como um anjo forte, determinado e sensato – afinal, era isso que eu queria aparentar, mas nunca vou ser. Mal sabe a indefesa que se passa por trás do meu disfarce. Ela, assim como eu, não conseguiu se encaixar nas comunidades por quais passamos. Então, passou a me seguir por onde fosse – como se eu fosse um líder.

Entretanto, Esperança me traiu.

Todos os anjos sabem que existem passagens escondidas que servem como pontes de ligação desse mundo com o Paraíso. Mas nós não sabemos onde esses acessos se situavam. Contei a ela, em alguma ocasião, que tinha ouvido falar que os Toucas Vermelhas – a gangue dos demônios mais temidos da cidade – conheciam a localização de uma dessas passagens.

Também expliquei a ela minha relação com os Toucas Vermelhas. Talvez “explicar” não seja a palavra certa, pois nem mesmo eu entendia porque eles insistiam tanto em me perseguir. Por algum motivo incerto, a gangue colocou meu corpo a prêmio e estavam em uma tentativa constante de me capturar.

Certo dia, acordei com um chute na cara de um demônio. Estava cercado por muitos deles. Fiquei muito assustado. Tentei correr, mas, obviamente, foi uma ação inútil. Eles me amararam e levaram para a toca deles. Ainda assim, não me revelaram o motivo pelo qual estavam atrás de mim.

No entanto, contaram a mim que Esperança foi quem denunciou onde eu estava. Segundo eles, ela os procurou dizendo que daria a informação caso eles prometessem revelar o local da passagem para o Paraíso. Os Toucas Vermelhas indicaram uma informação falsa a ela, sabendo que a ingênua Esperança iria procurar tal ponto e se decepcionar quando notasse que não era verdade – os demônios são um bando desgraçados.

Eu não suportava as diversas torturas pelas quais fui submetido. Meu corpo ainda apresenta marcas das chicotadas que recebeu e da fome que fui obrigado passar. Já a minha mente se apresenta assustada e desconfiada do que qualquer um possa fazer.

Mas quando eu tinha perdido toda a esperança de salvação, fui surpreendido por uma batalha travada para me resgatar. Um grupo de anjos invadiu a casa e enfrentaram os demônios.

Enquanto esse combate ocorria, tive mais uma surpresa quando vi Esperança vir até mim e me libertar das correntes. Ela e outro anjo carregaram-me para fora do local, sendo seguidos pelos demais anjos – o objetivo principal era me resgatar, sabiam que não iriam vencer os Toucas Vermelhas naquela Noite. Desmaiei logo quando sai da residência.

Era Dia quando minha consciência voltou, acordei no campo médico de uma sociedade angelical. Descobri que ali era uma dessas sociedades que conseguiram prosperar.

Em pouco tempo de convivência no local, soube que esses anjos – que se alto denominavam Salvação – planejavam estratégias para acabar com as mais poderosas gangues e tornar a cidade um lugar mais pacífico.

Quando encontrei Esperança tivemos muito que conversar. Ela me pediu perdão inúmeras vezes. Disse que estava em seu momento de maior fraqueza quando mostrou minha localização aos Toucas Vermelhas. Mas depois que percebeu o que fez, ficou desesperada para voltar e me ajudar – tanto é que nem foi atrás do suposto portal para o Paraíso que disseram a ela. Depois de muito sufoco, ela encontrou a Salvação e conseguiu os convencer em ir me libertar. Esperança realmente parecia não ser mais um ser ingênuo, e, sim, segura de si mesmo. Revelava estar aceitando ter que viver nesse mundo, afinal. Ela queria ficar com a Salvação e ajudar apaziguar a cidade. Decidi a perdoar pelo ocorrido – nunca fui de guardar rancores.

Infelizmente, eu não consegui me satisfazer com a sociedade – como sempre. Além disso, sentia-me isolado por não apresentar nenhuma habilidade útil a eles. Decidi ir embora de lá, então. Esperança disse que queria ir comigo e, como ela já não precisava totalmente dos meus cuidados, não neguei o pedido, mesmo que ainda não confiasse totalmente nela – talvez eu quem fosse o ingênuo.

Murilo Modesto
Enviado por Murilo Modesto em 14/08/2015
Reeditado em 21/12/2015
Código do texto: T5346304
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