662-SALVO PELO GONGO - Origem da expressão

SALVO PELO GONGO

— Boy, me dê uma dose dupla daquele veneno que você tem aí debaixo do balcão.

O proprietário da taverna olhou para homem alto, loiro e com olhar agitado, como se tivesse visto fantasma. Intrigado, estendeu um copo e a garrafa com o líquido âmbar. Os outros clientes, encostados no balcão ou assentados nas rústicas cadeiras, olharam com curiosidade para o recém chegado, conhecido de todos. O loiro encheu o copo.

Ninguém disse nada até que ele tomou de um só trago a dose reforçada do forte uísque.

— Boy, estava precisando disso, ele disse, enxugando os lábios com a costa da mão esquerda. — Hoje consegui salvar um das garras da morte.

Os companheiros aproximaram-se para ouvir que John Gong tinha a dizer.

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John “Gong” Mac-Fadden foi um dos personagens mais conhecidos da cidade de Manchester. No começo de sua vida foi coveiro do cemitério da cidade.

Por força de sua profissão, que exerceu por quase duas décadas (entre 1612 e 1628) observou, quando da exumação de cadáveres, que diversos corpos não estavam na posição em que tinham sido enterrados. Teriam sido enterrados vivos e se movimentado dentro dos caixões, na tentativa de sair ou no desespero de saberem-se definitivamente condenados à morte por falta de ar.

A medicina daquela época ainda não tinha meios para diferenciar certos estados de catalepsia da morte verdadeira. As pessoas que caiam vítimas de tal estado eram dadas como mortas, inclusive pela imobilidade, confundida com o rigor mortis.

John (que, como coveiro, não tinha apelido) Mac-Fadden ficou preocupado com tais eventos a ponto de imaginar como uma pessoa enterrada viva poderia, ao voltar do estado de morte aparente, safar-se daquela situação e voltar à superfície. Naturalmente com ajuda de alguém.

Escocês habilidoso e cheio de idéias dedicava-se, nas horas que passava em casa, a fazer objetos com movimentos: bonecos articulados, brinquedos que pareciam ter vida; miniaturas de navios à vela que funcionavam perfeitamente no pequeno lago do parque municipal e pequenos objetos de enfeites, movidos por molas e tiras elásticas.

Enquanto abria e fechava covas, ficava pensando na situação de um enterrado-vivo. Imaginava-se ele mesmo num caixão, sob mais de meio metro de terra sobre si. O sufoco de saber-se definitivamente lacrado, sem saída, a falta de ar, a morte chegando lenta e inexoravelmente...

Tinha compaixão por aquelas poucas pessoas que passaram por tão terrível situação.

Pensa que pensa, e usando de sua habilidade para mecânica, John imaginou um dispositivo que poderia ajudar as pessoas a sair de tão trágica situação.

Tal engenhoca, considerada a principio uma idiotice, ficou sendo conhecida como “O gongo de Mac-Fadden”. Era a reprodução de um gongo oriental: um fino disco de metal, de mais ou menos trinta centímetros, dependurado em uma armação de madeira. Acoplada à armação estava uma peça, semelhante a um martelo, com movimento, acionada por um fio. Quando fio era puxado acionava a peça de madeira, que batia no disco de metal, emitindo um som claro e audível por muitos metros. A sensibilidade do martelo era tão grande que respondia a qualquer puxão do fio, por mais fraco que fosse.

A administração do cemitério era competência do Bispo da Igreja de Saint Peter, a quem Mac-Fadden apresentou o seu dispositivo.

— Como é que um aparelho tão simples assim pode salvar uma pessoa enterrada viva? — Foi a primeira pergunta feita pelo bispo.

A audiência se dera na presença de diversas autoridades da cidade, que olhavam com desdém (inclusive o bispo, pela entonação sarcástica que dera à pergunta). Mac-Fadden não se intimidou e explicou:

— O Gongo fica ao lado da sepultura. O fio passa por um fino cano que vem do caixão até a superfície. Uma ponta do fio é amarrada á mão do enterrado, a outra ponta na extremidade do martelo. Qualquer movimento que o enterrado fizer, irá movimentar o martelo, fazendo-o bater no gongo e alertando a quem estiver por perto.

Passando à demonstração, o inventor fez passar o fio através de um cano estendido no chão, ao lado do gongo, e amarrou no seu próprio polegar. Um pequeno movimento de seu dedo foi o bastante para acionar a peça móvel, que bateu no disco de bronze. Um tinido claro e forte foi ouvido no recinto, e alguns assistentes emitiram “ahs” e “ohs” de surpresa.

— E quem ouvirá esse gongar? Como sabemos o cemitério não tem habitantes vivos!

Ouviram-se risos. O bispo continuava cético e sarcástico.

— Naturalmente, durante pelo menos três dias (e três noites), haverá de ter uma pessoa junto ao gongo, para o caso de...

— A administração do cemitério não tem pessoal disponível para essa vigilância. — Disse Mister Charles Grant, uma espécie de gerente, responsável pelos registros e a movimentação financeira do cemitério. — E nem dinheiro par mandar construir essa parafernália.

— Já pensei nisso, respondeu Mac-Fadden. — É claro que não será para todos os enterrados. Apenas para aqueles cujas famílias suspeitarem de que o enterrado não esteja morto. O aparelho não precisa ser do cemitério. Posso, com autorização de Vossa Reverência, alugar o gongo e meu tempo de vigília durante o tempo que for necessário para a confirmação (ou não) da morte do enterrado.

A reunião se estendeu por algum tempo até que a persistência, as demonstrações e o sistema de locação proposto por Mac-Fadden convenceram o Bispo e os demais presentes envolvidos no assunto.

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Grande era o medo de ser enterrado vivo. As famílias temiam o enterro do ente querido ainda vivo. Por isso, o invento de Mac-Fadden foi muito solicitado. O inventor, que se dispunha a ser também o vigilante do gongo, para o caso de manifestação de vida da pessoa debaixo de “sete palmos” de terra, teve de deixar o emprego de coveiro.

Para bem exercer a vigilância ao lado da sepultura, John acomodava-se em uma cadeira confortável, que ele mesmo construíra, forrada de couro e com um pequeno dossel para enfrentar a umidade das noites e a inclemência do tempo. Sentado e sempre acordado, passava dias de calor e frio, noites claras de luar (poucas) e muitas noites escuras, quando o cemitério ficava coberto pela névoa úmida, insidiosa e cheia de mistérios.

À espera do soar do gongo, o cemitério coberto na maior parte delas pela névoa

Era solteirão, não tinha família, o que facilitava o exercício dessa bizarra profissão da qual talvez tenha sido o único profissional a exercer.

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Há quatro anos no exercício da vigilância, John ouviu pela primeira vez o soar do gongo. Por mais preparado que estivesse, grande foi o susto. John afirmava que jamais dormia em serviço. Aconteceu de madrugada. Saltou da cadeira assim que ouviu o primeiro som do gongo. Pensou depressa no que tinha a fazer.

Ele (era um homem) está aí debaixo da erra há pelo menos doze horas. Não tem falta de ar, pois o cano lhe proporciona ar fresco. Mas devo agir depressa, a fim de que ele não morra de verdade pelo terror em saber que está enterrado vivo.

Tinha uma pá ao seu lado e com ela passou a escavar com movimentos precisos e cadenciados. Era um homem forte e em poucos minutos bateu com a ponta da pá no caixão. Limpou rapidamente a tampa, que abriu com perícia. Acendeu um lampião e iluminou a cova.

O que viu o deixou horrorizado: aquele que deveria ser o defunto, jazia deitado no caixão, com os olhos abertos numa expressão de puro terror. Antes que tivesse tempo para fazer qualquer gesto de ajuda, o enterrado-vivo estendeu os braços e agarrou-o pelas abas do grosso casaco, quase o derrubando para dentro da cova. Mas John foi forte e ajudou o pobre coitado a se erguer.

Ele olhou esbugalhado para John, para si próprio e depois se virou para ver ao redor: a tétrica paisagem do cemitério à meia luz do alvorecer. .

John o amparava, segurando firme em seu braço. Ele quis fugir, mas João o deteve.

— Calma, senhor, tudo está bem. Não precisa fugir.

— Mas onde estou? Que significa isto?

Em poucas palavras John explicou ao apavorado senhor o que acontecera. Em seguida, alinhando as roupa amarfanhada, preparou-o para voltar ao mundo dos vivos.

Um novo dia amanhecia.

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— Boy, vocês nem imaginam a surpresa da família quando cheguei com o homem. Não fiquei lá para explicações. Vim direto pra cá. Precisava falar com alguém e tomar um trago desse fogo engarrafado.

Os assistentes ouviam em silêncio. John se serviu de mais uma dose. O dono da taverna tossiu e disse solenemente:

— Graças a você, John, esse homem foi salvo pelo gongo.

Desde então, John passou a ser conhecido por John “Gong” Mac-Fadden.

ANTONIO GOBBO

Belo Horizonte, 9 de abril de 2011

Conto # 662 da SÉRIE 1.OOO HISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 23/02/2015
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