Pulsos Cortados e Coração Vazio
"A morte é apenas um sonho,
Flores brancas são meu cobertor,
E a terra molhada, meu leito."
- Isso tem que parar.
- ...
- Não educou sua filha direito, deu nisso
- Sua também!
- Mal educada e problemática!
- Você precisa fazer alguma coisa. Ela vive se machucando, e o pior que é para nada... Não ganha nada com isso. Você, como pai, deveria tomar alguma atitude.
- Você é a mãe, vocês duas se entendem melhor.
- Mas faça alguma coisa. Nem parece que é o pai dela! Precisa tomar uma postura mais rígida.
- Não sei mais o que fazer. Conversas não resolvem, medicamentos também não. Acho que a única solução é internar ela num hospital de loucos.
- Não exagere, não é para tanto. Deve ser a idade, ela só quer chamar a atenção.
- Isso não é normal, nessa idade nunca fiz nada parecido. Ela é doente, deve ter algum desvio mental.
Era um belo dia escuro.
Ela tinha 15 anos, mas aparentava 10, cabelos longos e pretos, magricela, porém bonita. Estava encolhida no chão do quarto, vestida com a mesma camiseta preta, saia de cetim e sapatos cano alto de camurça que sempre usava. Desencostou a cabeça da parede ao ouvir o som dos vagões do trem que passavam no quarteirão de baixo, levantou seus olhos maquiados com delineador negro e pincel espesso, ouviu por um instante seus pais conversando entre eles e suas lágrimas escorreram borrando a maquiagem gótica, dando a ela uma fisionomia psicopática. Pegou sua pulseira de couro e a vestiu sobre o curativo de gaze em seu pulso esquerdo, levantou-se e saiu de casa andando calmamente sem que ninguém percebesse.
- Qual seria a melhor maneira de alguém se matar?
- Acho que com um tiro na cabeça, é o mais rápido e menos doloroso;
- Melhor cortando os pulsos, pois não sei onde conseguir uma arma;
- Ouvi dizer que a maneira mais gostosa de morrer é com uma overdose de heroína;
- ...Heroína? A "Morte Doce";
- Exatamente assim que a chamam!
Ela sempre falava sozinha, pois a única pessoa que a entendia era ela mesma, tinha um milhão de assuntos enquanto caminhava solitária pelos trilhos da ferrovia, o céu nublado de inverno era o plano de fundo no cenário do seu teatro depressivo.
- Heroína? Como eu conseguiria isso se nem dinheiro tenho?
- Preciso ser mais criativa.
- Cortar os pulsos ainda é o plano "A";
- Não... Preciso ser mais criativa.
Lembrou-se do noticiário: Os suicidas quase sempre pulavam de um lugar alto.
- Dizem que cometer suicídio é um ato egoísta, mas obrigar outra pessoa a continuar no mundo contra a própria vontade, é a coisa mais egoísta que existe!
Olhou a sua volta procurando um precipício que poderia servir de trampolim para seu mergulho mortal, mas o ponto mais alto que ela encontrou foi uma árvore de três metros. Não dava pra se matar pulando da árvore, porem dava para passar uma corda num galho e se enforcar, mas onde ela encontraria uma corda naquele momento?
- Se meus olhos mostrassem o que sinto, ninguém aguentaria olhar em meu rosto.
Cansada da rotina dependente dos antidepressivos, e da fama de “esquisita” na escola, ela só se considerava diferente, nunca teve amigos, passou toda a infância presa no quarto em companhia somente dos próprios pensamentos, nunca se interessou por música ou televisão, repudiou a vida social, sempre dizia que a própria sombra era sua melhor amiga. Estava doente. Os antidepressivos disfarçavam a sua verdadeira situação, mas no dia em que os remédios pararam de fazer efeito, finalmente conseguiu enxergar o vazio que tinha em sua vida. Cada corte que fazia nos pulsos era um alívio para seu tormento, ia cada vez mais fundo com o canivete em sua carne. Estava com os braços completamente marcados, os novos cortes agora sobressaiam os antigos.
- Meus pulsos sofrem junto comigo toda dor que meu coração aprisiona.
Hoje sua angustia foi tão grande que a força empregada no corte o fez atingir a artéria, a dor da ferida foi muita, mas nem chegou perto da dor que ela sentia na alma, permaneceu em silêncio enquanto uma poça de sangue se formava no chão do seu quarto, já estava pálida quando seu pai a encontrou, ele ficou desesperado ao vê-la naquela situação, mas nada que três pontos e uma transfusão de sangue não resolvessem.
- Eu só queria um lugar para fugir quando as coisas não estiverem bem... Voilà! As coisas nunca estão bem.
Tirou os sapatos para sentir o metal frio da ferrovia. Lembrou-se da mancha amarelada que o sangue deixou no chão de madeira do quarto imaginando que aquele poderia ter sido o seu alívio.
- Qual o motivo que tenho para querer morrer?
O sol estava se pondo, e ela não queria vê-lo nascer de novo.
- Não gosto daqui!
- Aqui... Este mundo.
- O que você faria se entrasse num lugar e o lugar não te agradasse? Sairia de lá o mais rápido possível!
- Não tenho outros motivos para desejar a morte, apenas não gosto daqui e pronto.
- Odeio esse lugar com todas as minhas forças.
- Odeio seu cheiro, suas cores, seus sons, seus habitantes...
Enquanto andava equilibrando-se na lateral do trilho, sentiu uma leve vibração na sola do pé em contato com o ferro... de longe era possível ver o trem vindo.
- O trem...
- Ele poderia me levar a uma viagem inesquecível.
- Como não pensei nisso antes?!
A lua era a única coisa no universo que ela admirava, e até então não tinha notado como estava bonita naquela noite, estava cheia, grande e avermelhada no horizonte, uma parte da lua ia sendo ocultada pelo trem que ficava maior à medida que se aproximava, logo já estava bem próximo escondendo-a por completo. A jovem moça sentiu uma mistura de alegria e tristeza, e ao mesmo tempo alívio e medo. Sentou-se calmamente no trilho e fechou os olhos.
Em cinco segundos ela não estava mais infeliz;
Não estava mais se sentindo doente, nem angustiada;
Não estava se sentindo bem nem mal;
Não estava sentindo nada.