Clarisse

"Os punhos e os pulsos cortados

E o resto do meu corpo inteiro

Há flores cobrindo o telhado

E embaixo do meu travesseiro"

 

Flores - Titãs

 

Estou cansada. Meu mundo não é, nunca foi o que devia ser. Não tenho alguém que se importe de verdade comigo, nem que apenas me ouça quando preciso desabafar. Mas, estou acostumada com a dor. Sempre a mesma dor...

Mais uma vez, estou aqui, sentada no chão do banheiro com meu canivete nas mãos. Meus pulsos e tornozelos possuem marcas, cicatrizes. E estão sangrando. Sempre sangram. Mas, isso é bom, me faz esquecer um pouco a dor. Os cortes não são tão profundos quanto parece, mas é uma boa forma de me manter lúcida. Eu sei. É estranho. Mas, não tente me entender, não vale à pena.

Minhas mãos estão tremendo um pouco hoje. É falta dos remédios que eu não tomo há alguns dias. Não havia por que. Não faziam mais efeito. E não é disso que preciso. Ficar sedada não é a solução pro meu problema, só facilita a vida dos que me cercam. Mas, não me sinto bem nem mal por isso; não sou especial, apenas defeituosa.

Essa semana eu perdi uma amiga e fiquei pensando. sabe de uma coisa? A vida não é nada além de um eterno sofrimento por uma busca sem fim. Ela era parecida comigo, um problema para o mundo. E agora que está sob sete palmos, todos a elogiam dizendo o quanto era boa e essas coisas. Hipócritas. Ninguém vê, mas é disso que estou cansada.

Há dois dias, fui ao seu enterro. Por todas as partes só se via olhos inchados e narizes vermelhos. Não pude chorar. O sofrimento dela acabou. Sei que agora estou sozinha. E minha amiga se tornou mais uma estatística.

No enterro havia um policial, que abraçou a mãe dela prometendo pegar o assassino. Vi bem seu olhar para mim. Olhava de cima, como se fosse um tipo de santo capaz de consolar os tolos ali presentes. Seu ar era o de bom samaritano, que está cumprindo bem sua boa ação. Por mim, era ele quem podia estar naquele caixão. Eu não me importaria.

Fui a ultima a sair. Fiquei sentada na grama, olhando a cova ser fechada. Alguns, antes de partir, me chamaram para ir embora, dizendo que já havia acabado. É mesmo tão simples? Não pra mim. continuei lá, observando, pensando. somente quando anoiteceu que tive forças para me levantar e ir para casa.

Fiquei trancada em meu quarto por horas, a música alta não deixava que ninguém ouvisse meu choro. Fazia marcas em meu corpo, aliviava o sofrimento. A maquiagem escura borrou meu rosto, manchou os lençóis junto ao sangue. Acho que eu já estava morta há muito tempo e a solidão me ajudou a ver a verdade.

Tentar ser feliz não é pra mim. Ver o sol nascer a cada dia não é pra mim. Esse é o mundo de outros e não meu. Pra mim só resta a escuridão, o esquecimento, a dor. Mas, agora sei como acabar com isso tudo. Só é preciso respirar fundo e sentir o ar em meus pulmões mais uma vez. Respirando assim, penso nas libélulas. Voam livres, felizes. Quem sabe não posso ser como uma delas um dia...?

Me sinto como um pássaro acorrentado. A dor em minhas asas me impede de cantar como antes. Entre as lágrimas que molham meu rosto, olho para o canivete manchado com meu sangue sobre a mão tremula. Vejo meus tornozelos sangrando. Faço outro corte, um pouco mais profundo e o sangue pinga no chão. Eu posso fazer isso.

Seguro o canivete com a mão esquerda e pressiono a lâmina no pulso direito, forçando a entrada em minha pele e carne. Arde, dói, é quase um prazer. Continuo o movimento vertical por alguns centímetros. O sangue escorre abundante, a dor logo passa.

Passo o canivete para a outra mão e, segurando-o com esforço, repito o movimento no pulso esquerdo. Sinto um pouco mais de dor porque a mão direita está fraca, mas enfim consigo. Observo o sangue que escorre suavemente. Os cortes ardem, mas gosto da sensação. As lágrimas ainda insistem em sair.

É tão bonito... O sangue vermelho vivo em contraste com a pele tão sem graça. Curto a sensação, começando a sentir frio, arrepios gelados subindo pela espinha. Já não choro, minha cabeça está ficando leve. É inebriante, calmo... Posso ouvir e sentir meu coração batendo cada vez mais devagar... Os problemas não me parecem mais importantes... A dor diminui aos poucos...

Estou entrando em um estado de graça... O frio envolve meu corpo mas, dentro de mim há um calor gostoso... Sei que o fim está próximo... Sinto os espasmos, mas começo a me distanciar... Meus sentidos são tomados por uma sensação entorpecente... É maravilhoso...

... Quando minha visão se apaga, sei que tudo se acabou...

 

Fim.

Aureus Mortem
Enviado por Aureus Mortem em 19/05/2014
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