ARGOS E FÊNIX

— Com licença. Posso me sentar?

— Pois não. Esteja à vontade.

Assentando-se no tamborete defronte ao balcão do bar, o homem pede ao barman uma bebida, ao mesmo tempo em que detém o olhar inquisitivo na mulher ao seu lado. Ela percebe a insistência e fixa no homem seus olhos negros. Há um flash de reconhecimento, uma troca instantânea de energia e ambos se dão conta de que são velhos conhecidos — sem nunca antes terem cruzado seus caminhos.

— Sou Antoine Rodan Gorsais — A apresentação se faz com urgência. Estão no Aeroporto Charles De Gaule, em Paris, um dos locais mais cosmopolitas do mundo e são pessoas em trânsito, à espera de chamadas para embarque em aviões que partem dali para todas as partes do mundo.

— Muito prazer. Meu nome é Felice Niqueline, meus amigos me chamam de Fênix.

— Ah, sim! Para você sou simplesmente Argos.

O diálogo, em francês, poderia ser em inglês se estivessem em Londres ou Nova York, em japonês se o encontro fosse em Tókio, ou em africânder se na Cidade do Cabo. São viajantes que se sentem em casa em qualquer lugar do mundo. Ambos sabem, por um conhecimento milenar inconsciente e pela troca de olhares e palavras naquele momento, que são Imortais. Pertencem à estirpe, raça ou geração dos seres que acompanham a humanidade através dos tempos. Já foram chamados de Deuses, Santos, Mestres, Lamas, Budas, Cristos. De acordo com várias religiões, são reencarnações. Outras os chamam de Anjos, enquanto que para milhões de crentes, são Guias, Sumos-Sacerdotes, Pastores ou Líderes Espirituais.

A elegância do porte aliada à desenvoltura e à beleza negra de Fênix indica sua origem africana. Os olhos amendoados e os dentes brilhantes chamam a atenção de Argos, que tenta adivinhar em que país teria renascido Fênix. Ela, por sua vez, observa-o. Sabe que sua origem é mediterrânea: a estatura mediana, a tez clara, os negros cabelos encaracolados e a maneira suave, gentil de sua conversa formam um conjunto que levam Fênix a se lembrar dos deuses humanizados do Olimpo.

— Sigo para Nova York. — Ela se vira para o homem. — E você?

— Também. Tomo o Concorde que sairá dentro de quarenta minutos.

— Então, seremos companheiros de viagem.

O barman demora-se no atendimento e eles se aprofundam no conhecimento mútuo. O burburinho causado pelos passageiros que usam o bar como sala de espera não os incomoda. São pessoas sofisticadas e sabem se situar. A conversa continua enquanto esperam a chamada para o embarque.

O fator Tempo não existe para os Imortais. Suas ações e suas vidas são exercidas e vividas no plano da energia quântica, onde tudo existe ao mesmo tempo. Sem Passado nem Futuro, apenas o Presente se desdobra em infinitas variáveis, num mar de eventos que, sem acontecer seqüencialmente, acontecem simultaneamente. Não há, pois, que estranhar as coincidências, pois tudo coincide a um só momento. Simultaneidade é o termo para o mundo dos Imortais. Já para os meros mortais, necessários se tornam os paradigmas de Tempo e de Espaço.

Num tempo muito antigo da humanidade, quando as indagações iniciais sobre a origem, a razão e a finalidade da própria vida levaram à criação de deuses e entidades sobrenaturais, Fênix aparece nas histórias dos povos do deserto. Não era uma deidade na crônica oral dos árabes e jamais foi cultuada. Os relatos se referem a ela como uma ave fabulosa, que vivia nas paragens remotas dos desertos árabes, imortalizada por sua capacidade de renascer das próprias cinzas.

A missão de paz e amor, todavia, jamais foi mencionada nas lendas que cantaram Fênix. Como entidade ligada aos mistérios do fogo, sua presença se faz constante sempre que grandes incêndios colocam em perigo os humanos. Ou ameaça as obras da humanidade. Assim é que estava presente no primeiro incêndio da biblioteca de Alexandria, quando conseguiu amenizar os efeitos do ato destruidor determinado por César, salvando grande parte de papiros, de rolos de velinos, de pergaminho e de peles. Envolta pelas chamas, ela mesma foi carbonizada, mas ressurgiu em seguida, mais forte e sob a forma de bela romana. Foi como romana esposa de ilustre tribuno imperial que salvou centenas de vidas quando advertiu, em tempo hábil, do perigo que corriam às vésperas do grande incêndio que assolou Roma. Mais uma vez, vitima de sua própria condição de imortalidade, foi consumida pelas chamas, enquanto o imperador Nero, de lira nas mãos, entoava hinos de insanidade ao fogo destruidor.

Argos surgiu também de uma lenda na qual já não se distingue mais a imaginação da realidade. As narrativas gregas dão conta de sua origem mitológica: um príncipe argiano dotado de cem olhos. Mantinha sempre abertos cinqüenta deles, em constante vigília. Por essa capacidade, foi encarregado, por Juno, de vigiar Io, transformada em vaca. Mercúrio, que tinha grande interesse em Io, mesmo sob a forma bovina, adormeceu Argos usando dos sons melodiosos de sua flauta. Mergulhado num sono hipnótico, Argos foi morto por Mercúrio, que lhe cortou a cabeça. Juno espalhou os cem olhos de Argos pelo Céu e pela Terra. Alguns olhos foram se alojar na cauda do pavão. Outros, no céu, foram constituir a constelação que tem seu nome.

Ressuscitado pelo imaginário, Argos reaparece incontáveis vezes na história: incorporou o último imperador da Atlântida, com a qual desapareceu. Fundou a cidade que levou seu nome, no Peloponeso. Como cão de Ulisses, permaneceu na guarda de seu palácio e da assediada Penélope, enquanto o fabuloso herói se aventurava por mundos desconhecidos. Amigo de Jasão, inspirou o nome do barco e participou da expedição na busca do Pelego de Ouro. Era estimadíssimo pelos marinheiros, que adotaram o apelido de argonautas.

Sua passagem histórica é registrada nos momentos cruciais da humanidade, quando observação, vigilância e informação são elementos de fundamental importância. Viajou com Marco Pólo: regressaram juntos da China. Foi guardião de juramentos sagrados dos Templários e acompanhou os processos da Inquisição. Participou das Guerras Napoleônicas. Esteve na gênese dos sistemas de informação desenvolvidos durante as duas grandes guerras do Século XX e ajudou a fuga de milhares de refugiados da Europa Central para a América, para a Palestina e outras regiões. Como proprietário da maior empresa de comunicação do planeta, incentivou a difusão dos computadores pessoais. Trabalhando com o Pentágono, conseguiu trazer a Internet (um sistema exclusivamente de uso dos militares norte-americanos) para o uso público.

Fênix estava presente em San Francisco, na Califórnia, por ocasião do grande incêndio, conseqüência de terremoto que arrasou a cidade. E na mais importante destruição ocorrida no século 20, não por força de um incêndio mas pela hecatombe atômica, em Hiroshima e Nagasaki, lá estava ela. A total destruição das duas cidades atingiu também a Imortal Fênix, que, como sempre, ressuscitou das cinzas.

— Estou trabalhando num projeto de proteção das florestas e das áreas onde os incêndios estão acontecendo com intensidade cada vez maior. — Fênix dava continuação na conversa, que fluía entre os dois. — Especialmente na Califórnia e na América do Sul.

— Algum departamento da ONU?

— Não, nada de oficial. É uma ONG que não quer muita publicidade. Trabalhamos de maneira sutil, influenciando mais as populações dos locais e oferecendo-lhes recursos para soluções locais dos problemas.

— Gosto de saber dessa sua atividade. Poderei ajudá-la, mesmo sem alardear o seu trabalho. Embora esteja ansioso para saber de mais detalhes, vou me conter. Posso dar com a língua nos dentes em alguma entrevista. Mas quero passar-lhe informações que recebemos diretamente dos satélites, sobre a situação dessas áreas de seu interesse.

— Podemos trabalhar juntos. — Fênix se entusiasma com a perspectiva de permanecer mais tempo com Argos.

— Boa idéia. Mas, para ser sincero, estou tendo a premonição de que este será nosso único encontro. Não vejo com clareza como poderemos estar trabalhando juntos.

— Agora que você falou, vou lhe contar que eu também estou com uma intuição de que algo muito importante está para acontecer. Sinto isso sempre que estou na iminência de participar de um evento relacionado a ver com minha existência. Essa história de renascer das cinzas, você sabe...

— É! É isso mesmo! — Ele a interrompe. — Alguma coisa grande, espetacular, algo que vai ser notícia na mídia mundial.

Atenção senhores passageiros do vôo 0408 com destino a Nova York e Washington, pelo avião Concorde da Air France. Queiram embarcar pelo portão 142.

Atentos à chamada, Fênix e Argos se dirigem, com os demais passageiros, para o portão 408. Com a comissária, os dois Imortais fazem um arranjo para se sentarem lado a lado. Em breves minutos os passageiros locupletam a aeronave. Fechadas as portas, têm inicio as manobras para a partida. Aos cintos afivelados seguem-se os avisos das comissárias e o posicionamento do Concorde na cabeceira da pista para decolagem. Às turbinas é solicitado máximo esforço para o empuxe suficiente bastante à arremetida da graciosa aeronave.

Alguns minutos de expectativa e eis a máquina rolando pela pista. O barulho insuportável dos jatos é quase inaudível no seu interior. Adquirindo a velocidade ideal,os flaps acionados, alça vôo, proporcionando a todos a sensação de liberdade, de estar livre da força que os prende ao solo. Elevando-se sobre os campos adjacentes, o pássaro de aço brilha, magnífico.

— Lindo! — Extasiada, Fênix observa através da pequena janela o panorama que se miniaturiza rapidamente. Volta-se para Argos, quando ouve um estalo ensurdecedor.

— Epa! Que é isso? — Argos pergunta em voz alta, sem se dirigir a ninguém em particular.

Nas proximidades do aeroporto, um turista, filmadora em punho, nota quando um filete ígneo sai de uma das turbinas, transformando-se logo em um jorro de chamas. Acompanha o vôo do Concorde, perdendo a pouca altura que havia conquistado.

— Estamos caindo! — Foram as últimas palavras gravadas na caixa-preta do Concorde, que se abate sobre o solo, apenas a alguns quilômetros do aeroporto.

O fogo se espalha por toda a estrutura do avião e chamusca a vegetação adjacente. Quando chegam os carros de bombeiros, não encontram sobreviventes. A notícia da queda do Concorde, o primeiro acidente grave em naves do seu tipo, foi transmitida com insistência por todos os meios de comunicação para o mundo inteiro.

Das fumaças que se evolam dos escombros, uma tênue forma de energia plasmática se destaca: mais uma vez, Fênix renasce das cinzas. No turbilhão incessante do Universo de Energia, de algum lugar atemporal do não-espaço, Argos observa, por muitos de seus cem olhos, mais um evento na seqüência de sua existência Imortal.

- Antonio Roque Gobbo –

Belo Horizonte, 11 de setembro de 2001 –

CONTO # 115 DA SÉRIE MILISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 03/04/2014
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