Mistério a Bordo
A bordo do Claude Bernard, a caminho de Montevidéu - cansado de muitas emoções - casamento da primeira filha, despedida dos amigos, mais uma partida para longe do Brasil - entro às sete da noite em minha cabina, deito-me e pego no sono.
Mas de repente qualquer coisa me desperta.
Olho o relógio. É uma da madrugada. Ouço a trepidação do navio e sinto o seu doce balanço, como o de um berço. Deitada, a mão sob o rosto, a Bem-Amada, da cama ao lado, olha-me como uma criança. A luz do banheiro filtra uma suave claridade, que seria boa para uma nova incursão no sono, não fosse a angústia que, como um fardo progressivo, começa a oprimir-me o peito. Então levanto-me, ponho uma camisa esporte e saio para o convés de bombordo.
A noite é alta, negra, mas há duas estrelas no céu que resistiram ao teor da treva; mas não por muito tempo, pois logo desaparecem, deixando-me totalmente só. Busco-as ainda na escuridão impenetrável, feita maior pelas luzes do navio. Mesmo o mar, a vista não vai muito longe nele. Pressinto-o, todavia, por ali tudo à volta, taciturno e longo, berçando aquele navio que, inconsciente da sua enorme fragilidade, passeia sobre ele como um feixe de luzes flutuantes.
O vento faz-se mais frio. Volto à cabina, enfio um suéter, pego um bloco de papel e vou sentar-me no grande salão. Sinto necessidade de escrever, o quê, não saberia dizer.
Vontade, no entanto, de ficar assim sentado, com caneta e papel, espera de alguma coisa.
Não disse alguém que o homem escreve para matar a morte? Talvez seja esse o sentimento que me coloca, a contragosto, nessa posição para mim meio ridícula, como um espírita em vias de psicografar mensagens do Além. Porque o Além está presente, disso não haja a menor dúvida. Provou-o agora mesmo um gato que, como um raio, atravessou o salão aos saltos e depois parou junto à porta para olhar-me temeroso e eriçado, como se eu tivesse de súbito encarnado a Coisa que o perseguia antes.
"Você está louco…", digo eu ao gato, e como para me tranqüilizar.
Mas a mão do invisível arrepia-me levemente os pêlos do braço, e o meu coração bate mais forte, alertado pelas sentinelas do medo. Olho em torno. O gato continua parado à porta, o rabo espetado, o dorso em arco numa atitude de pavor e defesa. Mas a verdade é que não há nada. Aquele gato está querendo é ser contratado para o cinema.
Mas de repente ouço um horrível miado de terror e compreendo a razão do seu pânico, pois ele me foi em parte transmitido. Vinda do mar, uma enorme mariposa cor de cinza entrou direto sala adentro e partiu para cima do gato. Gatos sabidamente não têm medo de mariposas mesmo quando se trate, como no caso, de uma dessas gordas e felpudas bruxas, que em seu instinto suicida atiram-se às cegas sobre tudo, desfazendo as asas em pó, que aliás dizem que cega. Mas que aquele gato morria de medo daquela mariposa, estava eu ali para prová-lo. Pois ele em absoluto ousava atacar o lepidóptero que esvoaçava à sua volta. Só quando ela pousou, noturna e esfingética, sobre a borda do pano da mesa onde eu estava, ousou ele partir, numa corrida elástica, mergulhando escada abaixo para o convés inferior.
Olhei a bruxa pousada a meu lado. Nunca tinha visto uma tão grande. Meus cabelos eriçaram-se ao longo da nuca. Devia estar cansada de sua longa viagem desde terra. Não, eu não teria medo dela. Cheguei por trás, a mão em concha e prendi-lhe fortemente o corpo pelas asas. Ela debateu-se um pouco entre meus dedos, mas, sentindo-se dominada, aquietou-se. Fui até a amurada e joguei-a longe, contra a noite. De suas asas, restou sobre a polpa de meus dedos um finíssimo pó cinzento. Ao entrar, num gesto cuja razão não sei a que atribuir, calquei sob a pintura branca da parede a impressão digital do meu polegar direito.
Morte, misteriosa mariposa…