JUCA DA PEDRA

Alguns urubus esperam com paciência pousados nos galhos secos do jatobazeiro. A tarde é fria, o vento gelado não deixa o sol aquecer a terra. Nas franjas de muitas árvores e arbustos os sinais da geada recente: folhas e brotos secos, queimados na madrugada de inverno rigoroso. Sob a árvore onde as aziagas aves se demoram, corre um trecho de terra pedregosa, que o mato, judiado pela longa estiagem, não consegue disfarçar.

O terreno é pequeno, talvez dois alqueires de terra ruim. Um casebre arruinado na parte mais baixa, perto do córrego. Desolação total. O vento forte desce pela encosta, levantando folhas secas e gravetos. Como está há muito tempo sem cultivo, a aridez se manifesta aqui e ali: manchas de pura areia, onde nada mais nasce.

As aves observam. Esperam. Sabem que logo terão seu festim. De joelhos o homem esgravata a terra ao redor de uma pedra maior, pedregulho escuro, ereto, mais de metro e meio sobre o solo. Escarafuncha com as mãos, em movimentos rápidos, demenciais. Pá, picareta e enxadão estão por perto, quebrados, inúteis. As mãos sangram, os olhos alienados seguem os movimentos das mãos. Apesar do frio, o suor molha sua camisa rala.

Os urubus aguardam.

* * * * * * * * * *

— Juca, o telefone tá te chamando.

Juca atende. Acima do burburinho do bar, das tacadas dos jogadores de sinuca, Juca ouve uma voz feminina:

— É o Juca? Aqui é a rainha da Inglaterra. Quero comprar sua pedra. Te dou um bilhão de cruzeiros pela pedra.

— Num vendo, não. É pouco dinheiro.

A ligação cai. Juca sai eufórico do bar, fala com o primeiro que encontra:

— Num te falei? A rainha quer comprar a pedra. Ofereceu um bilhão ! Mas é pouco, minha pedra vale muito mais!

— Êta Juca! Cê é mesmo milionário com essa pedra !

Na semana seguinte (Juca vai à cidade só nas sextas-feiras ), a voz que chama Juca no telefone é masculina:

— Aqui é o presidente dos Estados Unidos, Juca ! Me vende a pedra ! Dou dez bilhões por ela.

— É pouco. Vale muito mais.

Houve uma semana que um engraçadinho se fez de Papa pelo telefone:

— Juca, eu sou o Papa. Cê tem que doar a pedra pra Igreja. Pra paróquia.

— Tá louco, seu Papa ? Como é que pode? Num tem jeito não sinhor.

E gabou-se para o pessoal reunido na praça:

— Até o Papa tá interessado na minha pedra !

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Houve um tempo em que Joaquim Silveira era apenas um pequeno lavrador às voltas com as safras miseráveis de sua sitioca, a qual já fora maior. Herdara mais de 100 alqueires que foram sendo vendidos em partes, através do anos. O que colhia nunca era suficiente sequer para o custeio. Os prejuízos foram roendo a propriedade. O gado, devido à pouca atenção do proprietário, também entrou na liquidação. Terras, gado, tudo se fora, para garantir a sobrevivência do proprietário.

Solteiro, de vida simples, de pouco gastar, era inacreditável como a miséria se instalou na propriedade de Juca Silveira. Na incompetência de administrar seus bens, já se anunciava a deficiência que o levaria para a terra dos sonhos, da fantasia e da loucura. Sem família e sem amigos, vivendo só e centrado em sua vida miserável, Juca foi presa fácil da idéia fixa de que em suas terras havia pedras preciosas. Diamantes, principalmente.

Jamais houve indícios de veio diamantífero, nem garimpo nem nada que pudesse validar tal idéia. Mas para o cérebro de Juca, era coisa certa, concreta. Podia ficar rico, famoso com as pedras de seu sítio. A ilusão tomou conta do seu coração e de sua mente. Ficou obcecado. Anunciava sua riqueza para todo mundo. Seu poder era imenso !

Não houve uma pessoa, uma santa alma para advertir Juca de sua paranóia. Pelo contrário, muitos viram oportunidade de gozação e chacotas sobre o maluco. Principalmente a chusma de ociosos que passavam o dia nos bancos da praça central da pequena cidade. Era um assunto a mais para preencher o vazio de suas vidas. Alimentavam a mania do coitado:

— E aí, Juca, já desenterrou a pedra?

— Não! Cê doido, sô ! Se eu desenterro, tá assim de bandido vigiando pra me roubar. Só eu sei onde que tá a pedra.

— Me vende a pedra, Juca. Pago mais que qualquer um. Quantos milhões você quer?

Não importava se fosse um, dez, cem milhões, bilhões, zilhões, a resposta repetia-se:

— Tá pouco. Num vou vendê pro ceis não. Ceis são tudo muito miseráveis.

Das brincadeiras pessoais para os trotes telefônicos foi um pulo. Toda vez que ia à cidade, além de encontrar-se com os "interessados" em sua pedra, recebia telefonemas, sempre através do telefone do Bar do Centro.

— Tá difícil vender pra rainha. Ela paga bem, mas a pedra pesa mais de uma tonelada. Como vou mandar um peso desse pro outro lado do mundo?

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Só por uma vez Juca perdeu sua mansidão e seu jeito engraçado de tratar do assunto. Foi quando Pedrim Mentira (logo quem !) falou claro e em bom tom:

— Deixa de ser bobo, Juca. Num tá vendo que esse pessoal tá te gozando ? Esses telefonemas são tudo de mentira, eles tão te enganando. E afinal, cadê essa pedra que...

Juca pulou na garganta de Pedrim e quando conseguiram apartar o maluco, Pedrim já estava roxo, quase asfixiado.

Juca foi levado para o manicômio, quer dizer, para o "Hospital Psiquiátrico Irmão Mário de Aguiar", . Dois meses passou o maluco em tratamento. Quando saiu, era outro: apático, calado, olhos baços, alquebrado. Contudo, os "amigos" da praça não o abandonaram. Voltaram às brincadeiras, aos trotes e às ofertas pela pedra.

De repente, numa roda animada, Juca decide-se:

— Vou vender a pedra! Quem dá mais?

Na continuidade da chacota ferveram os lances, como se fora um leilão:

— Dou cem!

— Dou mil !

— Cem mil !

— Um milhão !

— Prepara a grana que amanhã trago a pedra. — Juca dá a venda por encerrada. A farsa foi levada às últimas conseqüências.

Juca chegou ao sítio ao entardecer. A noite caiu cedo, no inverno os dias são curtos. Preparou as ferramentas à luz da lamparina, para atacar a escavação no dia seguinte bem de manhã. "Vou começar a arrancar a pedra assim que o dia clarear".

Dormiu mal naquela noite. A ansiedade para desenterrar a pedra era imensa. O sábado amanheceu frio, a geada na madrugada cobrindo as baixadas. O que não impediu Juca de se levantar antes de o sol sair. Sem agasalho, com as mesmas roupas com as quais havia dormido, ferramentas na mão, foi na direção da pedra, aquela maior, localizada quase no topo do terreno.

Começa cavoucando ao redor do monólito e verifica logo que tem muito trabalho pela frente: a pedra é grande e está firmemente enterrada no solo. Passam as horas, Juca no frenesi da escavação nem nota a passagem do tempo. O enxadão arrebenta-se ao bater com violência numa das faces da pedra. A pá está toda torta. A picareta desce e sobe, manobrada com vigor e fúria. Suas mãos enchem-se de bolhas, os calos crescem. O cabo da picareta estrala, racha, separando-se o metal da madeira.

Juca não se dá ao trabalho de voltar ao casebre para pegar outras ferramentas ou encabar a picareta. A tarde avança e o sol esfria, um disco vermelho sem calor. De joelhos ataca o serviço com as mãos nuas. Nem se dá conta que anoitece. Os urubus desaparecem na escuridão.

Juca arfa, geme, soluça enquanto cava. A noite fica cada vez mais fria e escura. A névoa se transforma em garoa, empapando sua roupa. Quando mais escuro, mais se esfalfa.

* * * * * * * * * *

O domingo amanhece e o frio continua. Céu claro, limpo, de geada. Zé Esteves põe sua charrete na estrada. A mulher ao seu lado, no banco, e Tiãozinho, o garoto de 6 anos, vai atrás. Rumo à cidade, a estrada conduz ao topo do morro, de onde avistam longe. Dona Maria olha na direção do sítio de Juca da Pedra.

— Óia, Zé, lá no sítio do Juca. Quanto urubu voando!Parece até um redemoinho preto !

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ANTONIO ROQUE GOBBO = S.Sebastião do Paraíso – 21.julho.2000

Conto 36 da série Milistórias

Publicado em “A Babel da Torre”, vol. 2 da Coleção Milistórias

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 06/03/2014
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