O DÉSPOTA DOS TRÓPICOS

Por certo não era o que esperava receber ao voltar a Lisboa, após quase cinco anos de uma vida que ele considerava mais um degredo do que missão de interesse pátrio.

A tarde brilhante dos primeiros dias de fevereiro de 1558 punha uma festa de cores no cais do porto, nas diversas naus e nas pequenas embarcações ancoradas. O casario além era uma fogueira de vermelho e alaranjado.

Dom Duarte da Costa não tinha mais olhares românticos ou estéticos para apreciar os brilhos do entardecer. Sua visão crítica e política correu por todo o cais e onde esperava ver emissários de El-Rei, uma guarnição militar, pompas que de direito lhe deveriam ser prestadas, viu apenas um aglomerado de curiosos. Ninguém que estivesse ali para o receber como legítimo representante de El-Rei Dom João III, que fora em terras de além-mar, na colônia do Brasil.

Um arrepio lhe passou pela nuca, eriçando seus cabelos debaixo da peruca de gala de usava. Algo sinistro, uma intuição avisando-o de que forças adversas o aguardavam na volta da sua pátria Portugal.

Chamou seu ajudante-imediato.

— Vamos esperar algumas horas antes de descer ao cais. A chegada dos representantes de El-Rei não tardará a chegar.

— Sim, Excelência, como aprouver a Vossa Excelência.

Dom Duarte subiu vagarosamente os degraus para seu camarote especial, na popa do navio que o trouxera do Brasil. Sentando-se na confortável poltrona ricamente entalhada (era exigente com móveis e tapetes , fazia sempre questão absoluta do melhor) começou a redigir algumas notas no seu diário. Em seguida, se pôs a burilar sua carta a El-Rei, relatório de seus feitos como Governador Geral do Brasil, entre julho de 1553 e dezembro de 1558, quando, por ordem de Dom João III, deixou o cargo na Colônia e voltou à metrópole, à Corte.

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No início de 1553 Dom João III, rei de Portugal, estava dúbio com relação à governança da Colônia do Brasil, descoberta há meio século. A ocupação pressupunha problemas à Coroa.

Tomé de Souza, o primeiro Governador Geral, apresentara seu pedido de dispensa do "elevado e honroso cargo" alguns meses antes, por carta de termos firmes e definitos.

— "...Certo estou de já ter cumprido com meu elevado dever patriótico administrando em nome de El-Rei, Dom João III, esta vasta porção do Vosso Império.

— "(...) Permita-me expressar minha impressão profunda e verdadeira, após tanto tempo de residir nestas plagas remotas e administrar os bens do Império. (...) Julgo que tanto esforço doado para colonizar o território com degredados e meretrizes equivale a jogar na terra má semente".

Dom João levou o julgamento de Tomé de Souza à guisa de crítica à política real de colonização. " Vá lá que o Brasil não tenha riquezas comparáveis às especiarias das terras do Oriente, nem ao ouro e pedras preciosas de Goa. Mas compete a mim, somente a mim, o Rei de Portugal, estabelecer os critérios de colonização. Vou tratar esse fidalgo Dom Tomé de Souza como ele merece."

Ao Secretário de assuntos ultramarinos ordenou:

— Chama Dom Tomé de Souza à Corte. Que seja intimado a explicar pessoalmente seu pensamento hostil à nossa maneira de colonizar o novo domínio.

-- E quem irá substituí-lo, Alteza?

-- Quero um homem sério, de responsabilidade. Indique-me três ilustres patriotas para que seja feita a escolha.

Não conta a História( há muito mais coisas não registradas do que se encontra nos arquivos ) e não se sabe se o nome de Dom Duarte da Costa foi incluído na lista tríplice, apresentada a Dom João III, como vingança política ou por falta de outros nomes. A primeira hipótese é a mais provável.

Dom Duarte era, na ocasião, Presidente do Senado de Portugal e jamais dera mostras de competência na administração dos bens públicos. Antes, era um político afeito às manobras da Corte, conhecido por suas artimanhas, sempre acobertadas pelo manto da legalidade. Assim, amealhava o quanto podia algum dinheiro extra ou vantagem para si e sua família, à custa da influência que exercia no desempenho de tão alta investidura política.

Enfim, foi o escolhido por El-Rei Dom João III.

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Antes de assumir as funções de Governador Geral do Brasil, ainda em Lisboa, D. Duarte deu mostra de como sabia gerenciar a própria carreira política e sua fortuna pessoal.

A paga (o salário, por assim dizer) do Governador-Geral do Brasil era até então de 400 mil-réis por ano. Sabendo-se que os funcionários mais graduados na Corte recebiam 50 mil-réis anualmente, vê-se que a remuneração do Governador era excelente. Ainda mais levando-se em conta que pouco ou nenhum desembolso fazia , residindo em prédio da Coroa, livre de encargos e ônus com a criadagem ou com a alimentação e locomoção.

Para deixar o Senado e assumir suas funções, requereu Dom Duarte uma "licença especial remunerada" com pensão adicional de 200 mil-réis por ano - e obteve dois anos de salários adiantados. Ou seja, antes de sair de Lisboa, engrossou seu patrimônio com algo em torno de 1 milhão e duzentos mil-réis, uma quantia considerável para os padrões da época.

Em chegando à terra brasileira, Dom Duarte continuou - aliás, potencializou - suas tramóias. Completamente livre, sem fiscal nem auditor, o novo Governador-Geral usou desenfreadamente de seu absolutismo para fazer grandes confusões - sempre em proveito próprio.

Suas desavenças primeiras foram com Antônio Cardoso de Barros, Provedor-mor da Colônia. No exercício de suas funções (algo como um moderno Ministro da Economia), Cardoso de Barros descobriu e denunciou a El-Rei a construção de diversos engenhos de cana, por e para Dom Duarte, com dinheiro da Coroa. Dom Duarte e Cardoso de Barros entraram em choque direto, e se tornaram inimigos irreconciliáveis.

Com o Bispo de Salvador, Dom Pero Fernandes Sardinha, houve um desentendimento por conta da administração dos bens da Igreja, os quais D. Duarte desejava tributar com impostos especiais, coisas de sua mente gananciosa.

— Vossa Excelência incorre em grave erro! Os bens da Igreja estão isentos de qualquer tributo.— Reclamou pessoalmente Dom Pero Sardinha, em audiência especial concedida pelo Governador- Geral.

— A Igreja deve pagar, sim, impostos sobre as fazendas, os engenhos e outros bens que estão fora de sua função espiritual. — Insistia na cobrança Dom Duarte.

Nessa mesma audiência veio à baila o comportamento de Dom Álvaro Duarte, filho do Governador.

— Saiba Vossa Excelência — atacou Dom Pero Sardinha com veemência — que o procedimento de Dom Álvaro está completamente intolerável. É um desenfreado e sem escrúpulos, não tem moral e é despido de qualquer sentimento cristão!

— Não se esqueça, Eminência, de que foi graças ao heroísmo de meu filho que a cidade de Salvador escapou de ser invadida pelos Tupinambás.

— É verdade, é do conhecimento geral. O que aumenta mais ainda a responsabilidade de um comportamento digno de fidalgo e herói.

Dom Pero Sardinha não disse, mas bem que poderia ter acrescentado ao diálogo o fato de seu conhecimento e muito bem sabido de todas as autoridades da colônia de que a omissão e o descaso do Governador-Geral haviam proporcionado oportunidade aos franceses de invadirem o Rio de Janeiro e estabelecerem ali importante estabelecimento que ameaçava a segurança de toda a costa sul da Colônia.

Calou-se Dom Pero e se afastou do Governador-Geral.

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Corrupto, ganancioso e encrenqueiro, Dom Duarte gerou descontentamento a torto e a direito, fez inúmeros inimigos entre aqueles que deveriam ajudá-lo na tarefa de Governador Geral do Brasil.

Assim é que, em carta enviada pela Câmara de Vereadores da Bahia a El-Rei Dom João III, em 1556, lê-se:

— "(...)Isto posto e data vênia, rogamos a Vossa Alteza que pelas Chagas de Nosso Senhor Jesus Cristo afaste da Colônia este Vosso representante..."

Os desentendimentos de Dom Duarte com o Provedor-Mor Antônio Carlos Barros e com o Bispo de Salvador, Dom Pero Fernandes Sardinha, foram além dos limites toleráveis. Resolveram, pois, viajar juntos a Portugal, com o fim exclusivo de confirmar todas as denúncias já feitas a El-Rei sobre os desmandos e a prepotência do preposto real.

Entretanto, a sorte estava com Dom Duarte: o navio no qual os dois eminentes personagens viajavam naufragou nas costas de Pernambuco. Foram aprisionados pelos temíveis Caetés,canibais que, ao saberem que seus prisioneiros eram "grandes chefes", os devoraram.

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A espera de Dom Duarte da Costa, retardando sua descida ao cais do porto, não foi inútil. Ele conhecia bem os vãos e desvãos da política da Corte de Dom João III. O sol já descambava para o ocidente, incendiando a cidade com os mais variados tons de vermelho e alaranjado, quando surge no cais uma comitiva real, composta de dois ministros e uma plêiade de súditos da Coroa.

Vêm receber oficialmente Dom Duarte com honras e pompas. Ao chegar ao cais é saudado oficialmente. Nenhuma menção aos seus desmandos, ao contrário, só elogios e louvores são mencionados nos discursos de boas-vindas .

-- A Coroa está grata ao cumprimento de tão árdua missão. -- Diz um dos oradores em nome do Rei.

Antes mesmo de ser recebido em audiência oficial por El-Rei, Dom Duarte da Costa reassumiu seu cargo de Presidente do Senado de Portugal.

A vaidade de D. Duarte chegou às alturas com as palavras finais do rei de Portugal, Dom João III, em seu discurso ao ilustre político (e péssimo administrador):

-- "(...) E pelo grande serviço prestado à Nação Portuguesa, tenho a honra de agraciar Vossa Excelência com a Comenda Oficial da Ordem do Império Colonial Português".

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ARGOS = ANTONIO ROQUE GOBBO - Belo Horizonte = 6 de junho de 2000

Conto # 28 da Série Milistórias

Publicado em “A Babel da Torre”, vol. 2 da Coleção Milistórias.

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 04/03/2014
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