Carla

Aquilo que não está morto pode jazer eternamente

e com eras estranhas, até a morte pode morrer

H.P. Lovecraft

É o amor que me faz adentrar o mais escuro dos pântanos carregando uma pá e uma lanterna. Minha única proteção contra os horríveis pesadelos que habitam as trevas era meu amor por Carla. Aquela maldita, que eu mesmo apanhei na rua, jogada aos ratos e pervertidos como um prêmio fácil. A pérfida que vesti e alimentei, a ingrata que amei mais do que a mim mesmo e que mesmo assim foi procurar nos braços de vagabundos o prazer sexual que infelizmente não pude dar…

Eu sabia de tudo e mesmo assim preferia não acreditar. Até que certa noite a certeza do fracasso me acertou em cheio como um odioso punhal. E eu a matei. Eu atravessei seu lindo peito com um espeto de churrasco e, chorando, vi seu ser pender de meus braços sem vida. Nunca mais eu veria seu sorriso. Estava acabado finalmente.

Determinado a ocultar meu crime, arranquei a beleza dela pedaço por pedaço com uma serra comum. Braços, pernas, mãos, intestino, cérebro, miudezas e por ultimo o coração. Eles foram atirados em vários sacos pretos e preparados para serem levados ao descanso final daquela maldita que destruiu meu coração. Com cuidado removi qualquer indicio desse crime passional do chão e das paredes.

Apesar da dor que me afligia, carreguei minha carruagem particular com os restos de Carla e parti em direção a velha estrada que margeia o pântano, oculto pelas trevas, ninguém seria testemunha do meu ato vil e muito menos de minhas lagrimas. Depois de algumas horas de viagem, quando a noite já estava se despedindo dando lugar ao odioso sol, eu cheguei ao local de repouso final de minha amada e ali eu a enterrei encerrando para sempre o mais odioso dos atos contra a natureza.

Mas a morte de Carla não foi o remédio para a dor que imaginei que seria. Os dias iam e vinham e minha depressão apenas aumentava. Tornei-me um recluso e talvez por isso minhas desculpas em relação ao paradeiro de minha esposa estivessem ficando cada vez mais difíceis de acreditar. Eles desconfiavam de mim e eu sabia muito bem disso. Era uma questão de tempo até que os aldeões e as autoridades, e mesmo os criados começassem a investigar mais a fundo a questão e logo a verdade viria à tona. E a saudade de Carla, me consumia. Eu precisava de seu calor, seu amor e seu carinho.

Então certa noite; após uma discussão difícil com autoridades policiais, no auge de minha loucura, pensei o impensável. Decidi cometer um ato ainda mais profano e nojento aos olhos do criador. Eu traria Carla de volta, eu juntaria seus pedaços e a reviveria. Novamente nos seriamos um casal e logo os ânimos de meus perseguidores esfriariam e a paz retornaria ao meu lar.

Na enorme biblioteca da família, encontrei em livros mofados e pervertidos a resposta para minha loucura. Particularmente em um volume odiosamente encapado com pele humana chamado de Necronomicon. Nele encontrei a forma de trazer Carla de volta para meus braços e por isso estou agora de volta ao esquecido local de repouso dos seus restos putrefatos.

Escavei a cova rasa que fiz para ela com facilidade. Eu estava possuído pela mesma força e determinação de que são vitimas os lunáticos gritantes de hospícios imundos e esquecidos. Com pericia re-arrumei seus restos em decomposição até formar uma parodia doentia de seu corpo. Entoei cânticos malditos em línguas profanas a muito extintas da face da terra, negociei com seres deformados saídos de pesadelos e adorei deuses cuja face monstruosa levaria toda a humanidade a loucura.

Eles me responderam e eu tive êxito. Retornei para casa, exausto e já nas portas da insanidade, quando me dei conta estava estirado em cima da cama e já era dia. Porém, não foi o som dos pássaros ou mesmo o alegre conversar dos criados que me acordaram e sim o horror do ódio e da vingança. Corri em direção a janela e só quando já estava diante dela e que percebi que ainda usava as roupas imundas e ensangüentadas da noite anterior.

A multidão me olhava espantada e então me lançaram ameaças em coro caso eu não me entregasse. E já haviam mesmo arrombado as portas da frente com ajuda dos empregados, e alguns ainda tiveram a audácia de entrar pela porta do meu quarto e me ameaçar com pás e garfos de retirar o feno. Porém, antes mesmo que me atacassem meus agressores foram tomados de um horror indescritível. A sombra maligna e decomposta de minha antiga esposa sorria para eles, então gritei com toda força dos meus pulmões em direção aos homens que choravam ao olhar para ela.

“Tolos, do que me acusam? Não conseguem ver a bela figura de minha esposa sorrindo para vocês sentada em minha cama? Vejam como é horrível sua face, porém belo o seu amor‼”

José Brito da Silva Júnior
Enviado por José Brito da Silva Júnior em 28/02/2014
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