A doce e cruel Radagásia
Diante daqueles olhos, os céticos ajoelhavam-se para pedir clemência. Inspirava não sei que terror, que angústia nos olhos alheios. Ebúrnea estrábica, dona de umas unhas longas, de uns cabelos cinzentos, de uma boca seca. Contava apenas 17 anos. Pareciam 71. A beleza pousava naquela criatura quando sorria, entreabria a boca sem graça e deixava que aparecessem as duas fileiras impecáveis de dentes igualmente ebúrneos. Então havia luz, então havia beleza.
Brilhava também quando dançava, quando a música enchia os salões a casa e os pequeninos pés nus, também pálidos e esqueléticos, conduziam todo o corpo com seus véus. Pensava que a dança era bonita, assim como os véus, assim como ela.
De cá para lá, com os véus que eram sete, com as cores que eram sete, com as horas que corriam. Ela bailava. Incessante e perturbadoramente. E vez ou outra tingia os lábios de um vermelho rubro e toda a sua face tornava-se outra, mais viva e assustadora que antes, lembrando-me não sei que dor já sofrida. Ah sim, era bela. Porém, cruel. Radagásia não demorava-se nem um instante em sua dança, não permitia que eu a tocasse, que a sentisse, que eu a controlasse. Era uma maldita. Secou meus sonhos todos, estilhaçando-os um a um entre os dentes. Era dessas coisas sobre as quais não temos controle, era feita da mesma matéria que os sonhos ou era o sono que os cria. Era qualquer coisa de intangível e inefável. Perene por nunca deixar de existir, efêmera por não demorar-se diante de meus olhos.
Aconteceu que Radagásia adoecia ao passo que dançava, esgotava-se e empalidecia. Morria um pouco a cada dia, ou a minha morte refletia. Fazia-me despercebido e frívolo, não dispensa a ela, olhares demorados ou preocupados como faziam seus pais. Deixava-na em paz, embora ela não me deixasse. A imagem de Radagásia dançando, consumindo os corredores e as salas da casa com sua notável languidez e perspicácia, invadia meus devaneios com a força de uma tempestade. Tempestades são belas. Radagásia também.
Mas numa noite, minha pequena não dançou, chamou-me ao pé de sua cama, olhou-me com aqueles olhos de afogar multidões dançantes. De perplexo que estava, estendi a mão para tocar-lhe a face e então, pela primeira vez a senti, fria como a máscara de um morto. Os lábios rubros, o corpo lânguido. De uma vez para sempre, pude contemplá-la por alguns segundos. E nos segundos vi sua dança, sua canção árabe, seus olhos profundos, Nos segundos, que também eram escuridão, eu via o infinito. Fiquei ali, incrédulo aos pés da imagem que antes era um vulto disforme e colorido de véus e agora convergia definitivamente para um negror absoluto. Compreendia Radagásia, mas não podia controlá-la. Nem antes, quando meus dedos esticavam-se na tentativa inútil de tocar-lhe, tampouco agora, que a pequena fugia definitivamente de minhas vistas.
Fechei os olhos numa dor contida, ninguém se aproximara de mim no tempo em que estive fitando a doçura daquela que se encerrava, algo de fúnebre e solene pairava no ar. Penso que meu primo Raban, apiedou-se de mim e pousando em meu ombro, disse-me com a voz de ontem:
- Nunca mais sentirá a dor de não tocá-la. Nunca mais.