SANGUE E PORTINARI

Estava exausta... Carreguei-o por horas. Quando vi que não conseguia mais carregá-lo nos ombros, coloquei-o numa lona e comecei a arrastá-lo. Desesperada, com dores insuportáveis pelo corpo, me agarrei ao último fio de esperança de que encontraria socorro. Ele sangrava muito, estava fraco. À noite quando eu não aguentava mais, parava para dormir abraçada ao meu amor.

Depois de três dias e duas noites, fomos encontrados. Eu estava desacordada de cansaço e fome. Acordei no hospital alguns dias depois, ainda tinha o corpo dolorido. Então soube que ele estava morto antes mesmo de sairmos daquela maldita fazenda.

Nesse momento comecei a me lembrar, nem em mil anos esquecerei o inferno vivido. Eu estava a caminho da casa de duas amigas, Joana D'Arc e sua irmã que agora não me lembro o nome. Eu percorria sempre o mesmo caminho, descia pela rua vinte e nove e depois subia a Avenida Brasil até o cemitério da cidade. Em frente havia um pasto cercado, onde de vez em quando tinha um cavalo pastando. Ao chegar ali, virava à direita, andava uma quadra e depois virava à esquerda. A casa delas ficava no meio da quadra. Era dessas casinhas de pau a pique, tinha um jirau e era de chão batido. As duas eram criadas pela avó em condições um pouco pior que a minha. Eu as visitava pelo menos uma vez por semana, era longe da minha casa. Mas nesse dia não cheguei lá. Saí como sempre no mesmo horário com o mesmo destino, mas alguma coisa me fez mudar o trajeto. Lembro-me bem de ter chegado até o pasto e de ver o cavalo castanho arrastando uma corda que estava presa ao pescoço. Fui encontrada uma semana depois do outro lado da cidade com o vestido todo encharcado de sangue. Acordei no hospital, sem o menor arranhão. Os médicos e a policia nada descobriram e ninguém soube explicar o acontecido nem a origem de todo aquele sangue. Durante três dias não me lembrava de nada, embora me esforçasse. No quarto dia fui me lembrando de tudo, mas continuei afirmando que não me lembrava. Lembro-me que foi difícil esconder a euforia que me envolveu e o sorriso infame que não saía dos meus lábios. Há um ditado que diz que a vingança é doce. Outro diz que é um prato que se come frio... Ambos são verdadeiros. Apesar de ter apenas quinze anos, o que fiz foi trabalho de gênio; mais que isso... Foi poético. Aconteceu há vinte anos, mas hoje ao relembrar ainda sinto meu coração acelerar, meu corpo ferver e ainda consigo sentir o cheiro. Um cheiro delicioso de sangue e Portinari!

Márcia Veríssimo
Enviado por Márcia Veríssimo em 14/05/2013
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