O CORAÇÃO OCULTO DE CHARLES
Pela janela viu a lua cheia, amarela como um enorme balão aceso despontando no meio do céu negro. Dentro de si ouviu um uivo longo, gutural quase. A noite tinha o perfume verde das arvores que se desenhavam quase negras as copas, mesmo com as luzes artificiais dos postes da rua. Era um rapaz assim, debruçado a janela, a fronte fechada, um pouco baixa, os olhos verdes impressionados pelo brilho da lua. Sorria, embora seu sorriso fosse tão sutil que se nem lhe desenhava na face branca; os cabelos louros e longos jogados para a nuca, assim preso entre as orelhas. Atrás de si a musica de instrumental pesado, gótico. Tristania. Às vezes lhe fazia bem ficar assim: parado com um pensamento. Sozinho. Em seu quarto. Mas Charles podia assim olhando pela janela aquela lua cheia acesa, tênues nuvens escuras cruzando sua luz, fugir em um salto, equilibrado de cócoras sobre o muro, todo vestido de preto, e em um salto maior alcançar os telhados das casas, de telhado em telhado, às vezes equilibrando-se em um, de cócoras, conseguia enxergar a dimensão do lugar, ver o ponto onde alcançar, os próprios olhos iluminando a escuridão desejada. Colocando-se de pé, empertigado, as mãos nos bolsos da calça ou os braços cruzados ele então buscava o lugar. O canto. Sobre sua cabeça voava uma coruja branca de enormes asas abertas, acendendo seus olhos vermelhos, mostrando-lhe a direção. O mundo era seu. O seu mundo. Charles podia cruzar os braços, de pé em cima de um telhado, observar o mundo aos seus pés recortando-se em casas como abrigos, e gente como presas assustadas de ferozes predadores. Era um engenho secreto e silencioso. Um motor continuo sempre. A lua cheia acesa, ardendo, e sob ela parecia correr um vago fio de nuvem negra. Sempre parecia subir daqueles morros, distantes, longínquos onde os lobos-homens deviam emergir e fazer a ronda secreta. Eles saiam de suas cavernas ocultas, desenhadas na escuridão de onde não se pode adivinhar, quando a noite desabava sobre o mundo, e por baixo dos seus capuzes negros e seriam tão somente lobos novamente, cinzentos, brancos ou negros, de olhos vermelhos ou azuis, famintos, famintos pela escuridão, não deixando que as presas assustadas se aproximassem com sua fome e ganância de se tornarem predadores.
A coruja branca pousou sobre o galho alto de uma figueira, e ali ficou repousada como uma fofa nuvem ou penugem no mar denso da escuridão. Charles saltou mais alto para outro telhado, seus tênis ganhando garras que o prendia, e ele pisava ágil e preciso a cada cimo conquistado, cruzando os braços, mirando as cavernas ocultas desenhadas nos morros longínquos tornando-se negro-azulados pelo breu etéreo da noite enfeitiçada em plenilúnio. Um uivo longe, outro mais distante, ecoou um tão próximo que seu coração sentiu o ritmo, suas panturrilhas sentiram as forças de garras por baixo delas, e se manteve firme, empertigado, pleno, acima da cidade abrigada, onde as criaturas frágeis se abrigavam como ostras escondendo-se em suas conchas.
O medo escondia-se no rapaz, empertigado e branco como luz na escuridão, no âmago mais isolado de sua alma virgem e dócil dos segredos sádicos e sujos das presas que aspiravam ser predadores; e daquela distancia, com um alto olhar tenaz, ele avistava as feras predadoras como sombras gris na escuridão. E seus olhos vermelhos e azuis, ou azuis e vermelhos ao mesmo tempo (cambiantes) apareciam aqui e ali dentro da escuridão quase gris ou azulada.
Charles saltou para o alto de um edifício, dali, empertigado no alto de sua torre, levantando os braços quase podia alcançar o céu negro de estrelas como esferas faiscantes. Seus braços. Suas mãos num gesto selvagem desenhou-se sobre a bola acesa que era a lua. A coruja já bem distante, imóvel em seu galho, solitária, piscava-lhe os olhos vermelhos. Apontava-lhe. Lá!, pareceu avisar o voo de uma gralha em seta para a lua. O rapaz saltou mais alto, longe como se mergulhando em grandes asas nos braços úmidos da escuridão. Pisava o solo escuro verde-musgo dos morros longínquos, onde as cavernas ocultas se recortavam, onde passeavam os predadores farejando o frescor da escuridão. E o rapaz em sua roupa negra como a escuridão era acesa luz na sua pele clara, pelos braços e rosto, e em seus cabelos louros, e podia afagar os predadores, os lobos que cintilavam os olhos na escuridão. Charles andava entre eles, agachava-se, encarava-os nos olhos. Sentia lhe os hálitos, o faro do ódio, da fome, compartilhava a ânsia no respirar, das justiças enclausuradas, dos gemidos nos interiores das sarjetas onde o esgoto se aliava a própria condição humana, num repicar de um chicote surdo sobre os dorsos fatigados das mais débeis criaturas solitárias.
As mãos de Charles afagavam as cabeças dos famintos predadores da escuridão, defendendo seu limbo secreto, reconhecendo naquele rapaz louro a intrepidez, audácia e sutileza de uma fera enjaulada num corpo belo.
Seriam orvalhos da luz plenilúnio ou o dia raiando sobre as corcovas dos morros?, as cavernas ocultas se abrindo, suas mãos brancas foram passeando sobre o dourado pelo orvalhado que emergia de sua virilha, e aparecia tênue sobre seu abdômen. A luz acesa do quarto iluminava mais, irradiava. O vocal era num idioma sueco agora, os rifles pesados, os r arrastados sobre a bateria pesada e densa estremecendo as paredes. Seus cabelos louros, dourados pela claridade do quarto, espalhavam-se sobre a fronha púrpura do travesseiro. Atrás dele a janela aberta oferecia a brisa fresca da noite avançando rápido.
Agachava-se próximo a uma sarjeta, sobre as grades imundas, que evaporavam um bafio fétido da condição opróbrio humano, ele via não um rosto desfigurado, mas mirrado, em olhos desencontrados e baços, em que a lagrima seria escorrida e densa como chumbo, negra violácea no rosto devastado. Única lagrima cortando um olho baço e torto. A mão era um galho seco como uma voz fraca, tentando alcançar a grade ou o rapaz?, era uma voz fraca, empoeirada, de onde gemidos soturnos imploravam solidão.
Lá fora no jardim, verde intenso do pátio iluminado, uma rosa branca desabrochava-se em seu botão no silencio úmido e fresco da noite. Germinava. Os grilos faziam seu hino velado entre a grama acolchoada, orvalhada. A brisa evoluía a um vento em sopro contínuo, frio, trazendo uma álgida sensação de desamparo. As gotas densas de chuva começaram a descer, enquanto a lua já toda se escondera sobre um céu negro roxeado se repartindo em raios. De pé junto à janela, Charles sentiu o vento entrando arredio, mexendo com seus cabelos lisos e loiros assim como as escuras cortinas junto à janela.
Suspirou, abriu um sorriso para o cenário em movimento pelo quadrado da janela. Não podia mais ver a lua por ora, mas a sentia em seu interior como seu coração batendo emocionado com aquele reencontro. Era preciso que se sonhasse de vez em quando para não morrer tão jovem o coração tão cheio de ideias, embora a voz assustada da avó, vindo da sala, chegando à plena chuva, em meio a risos de si mesma e com o marido, Pois é, franzia os lábios delgados pensando, Não era nada mesmo se não fosse a Vida.
Rodney Aragão.