INFÂNCIA MORTA
Procurava algo naquele dia vazio parecido começar a vida daquele mesmo fio de manhã em que acordara assim assustado de um pesadelo. Era apenas um menino, doido para brincar com seu pião, a fieira enrolada, atirá-lo ao chão e vê-lo rodar, rodar, rodopiar. Quantas vezes fazia isto então desde aquele dia vazio começado. Sempre, sempre e para sempre. Mas colheu mais dias, embora pálidos e melancólicos, contudo cheios de alegrias no seu recheio como se mordesse com felicidade a boa parte ao meio e espremesse tudo que sobrava. As folhas enormes e amareladas pelo chão pavimentado, as copas das arvores despeladas e tristes como braços secos e estendidos da saudade. Tristeza, tristeza, alguém se ia num carro fúnebre, ele não viu o féretro, mas sentiu o cheiro adocicado e enjoativo da saudade, sentiu mãos levemente pesadas e confortadoras em seus ombros, e sentiu a ínfima picada de uma vontade de chorar que não veio à tona, por que em instantes – ou foi dias se engrolando – abriu-se um largo sorriso em seu rosto e pareceu avistar uma paisagem diferente, diáfana, encantadora, distante, perfumada, cheia de novos sabores que sua boca, seus lábios se adocicavam, e sentia-se suspenso, às vezes corria, quase que voava correndo pelo espaço longo e gramado, e avistou pássaros coloridos, estendeu pássaros de papel num céu azul, deitou-se sobre a relva verde, admirou a brancura acidental das nuvens correndo. Foi acidentalmente que se viu num topo de uma duna, admirando um lençol cristalino e tímido de agua, com pequenos peixinhos a bailar sobre seu fundo límpido. Parecia tudo tão irreal, e perguntava-se onde se escondera aquele mundo, se aquele mundo apenas existira dentro de si, e houve um tempo em que ele pudera ver este mundo, mas agora seus olhos boiavam numa penumbra lúgubre, entre fios tristes e desencapados, sob tetos de vigas podres, escondendo teias horrendas de aranhas desengonçadas e invisíveis, com baratas arrastando-se como vermes sob seus pés. Ele era solitário, pesado, não sentia mãos sobre seus ombros, mas avistava olhares carregados de tristeza e ódio; rancores oprimidos em sorrisos enrugados. E nem mesmo levantava seus olhos para procurar o céu, pois se via preso, enjaulado, sempre cercado entre paredes, ou rodeado por muros e muralhas, mesmo sentia comprimido entre grades, oprimido como um animal enjaulado, erguendo sempre os braços secos, as mãos ossudas por fora das grades, implorando, humilhando-se, ajoelhando-se, chorando, sempre, cada vez mais encurvando seu corpo, envergando-se no próprio peso pena, arrastando os pés como se pesados, carregando enormes bolas de chumbo em correntes nos calcanhares. Infeliz, seu rosto comprimia-se em mascara de sofrimento, seco já de lagrimas, seu pranto era um acido que escorria por suas entranhas e destruía lhe por dentro, comia o quê que havia de alma, o resíduo de algo que vivera outrora escondido em seu interior, matando o tesouro intimo que já não acreditava mais no que vivera, sem esperança ou aguardo, sua única e remota funcionalidade era sobreviver sem saber para que. Apenas sobreviver, como um resto de uma espécie que tenta se preservar, como um fungo que se agarra à ferrugem de um casco de navio abandonado ao mar na solidão da maresia e da umidade. Apenas sobrevivia sem se ver nem ao menos como criatura, mas como coisa abandonada ao relento, olvidada, se valendo menos que uma pedra onde a urze podia brotar.