Um Artista

Parte I

Sangue. Nada além do vermelho manchando todo o apertado cômodo mal mobiliado. Mas não simples manchas cuspidas de uma briga violenta entre dragões. Era tudo milimetricamente construído, traços bizarros de uma pintura que deixaria pesadelos eternos no mais corajoso e frio dos homens; memórias de arrepinho na espinha.

Parecia confusa a disposição daquela arte, aqueles membros espalhados, e as tripas dividindo espaço com almofadas na cama. Para um de nós, supondo que o senhor leitor seja um homem café-com-leite e com a mente livre de sonhos doentis como o do nosso personagem, aquela cena daria no mínimo pesadelos e analistas frustrados tentando superar a cicatriz mental, mas não para ele.

Aquilo, sob sua visão, era arte. Dava muito orgulho, fazendo-o se considerar páreo de Van Gogh. Mas nem Van entenderia a sua arte. Nenhum dos grandes pedantes jamais o consideraria, ou museu algum iria se interessar pelos seus traços. Exceto o necrotério, que é um museu da vida.

Era incompreendido, mas aprendera a aceitar isso. Ele era o suficiente. Idolatrava as suas obras, e mais ainda, a si mesmo. Considerava a sua adição ao movimento artista algo divino, e por isso sentia-se feliz em fazê-la crescer.

Ele começara cedo como artista. Assim como a criança que começa com desajustados rabiscos, seus primeiros traços haviam sido com a pequena gatinha siamesa da velha vizinha solteirona. Mas entendamos e convenhamos, afinal, a gatinha buscou o que teve, vindo todas as noites miar em sua janela e se convidando para entrar em seu quarto. Nenhuma criança gosta de ter a sua privacidade isolada. E também não fora difícil, pois além de insensível as necessidades do menino, a gata era extremamente dócil. E logo, um carcaça aberta ao meio, completamente desmembrada e sem nem traço do que era o animalzinho estava pendurada no balanço do pequeno parque da esquina. Era bonito aos seus olhos, e a crueldade era vista como arte. Visão que nem a idade adulta mudou, e que jamais mudaria.

Ele nunca chegaria a se considerar cruel, pois conhecia bem a crueldade. A crueldade vinda da cinta do pai, que o criara sozinho, divindo o carinho pelo garoto com garrafa de whisky barato. Nesses momentos é que enfrentava a crueldade humana. O que fazia era apenas belo e libertador.

Ele criança tinha muito ódio, aquele ódio gutural e insensível que as crianças sentem. Desejava a vingança. Não entendia o pai, nem nada. Mas esse desejo se foi, tão logo o quanto foi o velho. A natureza, as bebedeiras e o cigarro haviam feito o seu trabalho, e ele apenas tivera de observar.

Aos 53 o homem cedera-se pro câncer que começou no pulmão, e sem perder tempo tomou todo o velho corpo. A maneira como sofrera o seu pai, ele não desejaria para ninguém. Foram cinco longos anos de luta, onde ele navegava entre a culpa pelo sofrimento do carrasco, e o prazer donde vinha mais culpa. Era adolescente então, e no último ano de vida de seu pai, que em meia década, envelheceu mais vinte anos viu o tumor se espalhar às vistas pela barriga, aflorando na pele e por fim, se tornando uma metástase completamente exposta, que exalava um terrível e podre cheiro de comida mal-digerida, de vômito. Além do sangue e do pus, que formavam mandalas no lençol amarelado. O segundo umbigo que se abriu foi o ápice do sofrimento, e o limite, matando e vingando então, deixando-o livre do pai. E da culpa.

Depois disso tornou-se liberto para praticar suas habilidades artísticas.

Nunca fora conhecido por seu nome, sempre taxado por assassino, psicopata, doente, até "serial killer". Era degradante, afinal não era nada disso. Ele era apenas um artista, seus pincéis e tinta eram diferentes e nada usuais, mas ainda era arte. Arte monocromática, em tons de vermelho.

Parte II

A alguma altura de sua vida, sempre vivida nas sombras, e sustentada pelas suas peças ele conheceu o amor.

Estava sentado ao pé de uma fonte desativada, em uma praça que quase nunca era visitada por seres humanos. Havia passado o dia ali, acompanhado do vazio. Fora um dia uma bela fonte, e ainda tinha seus resquícios de beleza. Havia nela esculpida Afrodite, a importal deusa da beleza e da fertilidade. E sua imagem carregava estes princípios, pois os inspirava.

Não se lembra de onde sua amada surgira. Se viera da entrada do pequeno coreto, ou se surgira do ventre da estátua. Tudo o que se lembraria para sempre era de sua beleza. Era afrodite esculpida em carne, uma flor humana que parecia intocável para cristãos e pagãos. Foi amor a primeira vista, vista com tons de contemplação.

Ele então decidiu. Decidiu que a amava o suficiente para fazê-la a sua mais bela obra. Reesculpi-la aos seus olhos e gostos, imortalizando-a na morte.

Aproximou-se. ele perguntou seu nome, e disse o seu. O verdadeiro, coisa que jamais fazia, dando sem ela fazer a menor ideia, uma grande prova de amor em uma frase. Ela era perfeita. Havia uma afeição em seus olhos que ele jamais conhecera. Convidou-a para um café, ela aceitou. Ela foi na frente, ele aproveitou a distração e voto de confiança, e sacou o punhal que carregava.

Fez da fonte de Afrodite seu quadro. Considerou a obra, quando terminada, uma comparação nada menos do que justa a sua beleza. O corpo nu de sua amada, intacto em pontos estratégicos que não violariam a sua imaculada imagem, vertia sangue como verteria água a fonte. E a mente do artista teve a sua rapsódia do amor, a memória mais importante que guardou para o resto de sua vida.