Liberta.

Era noite. A lua banhava o céu sem estrelas, as ruas gritavam em profundo silêncio, o vento levava para longe de tudo as folhas de mais um outono sem cor, a vida morria diante dos seus olhos enquanto lá no alto, o ponteiro avisava ser meia noite.

Os sussurros da noite preenchiam o vazio muito além das copas das árvores e um coração solitário vagava, simplesmente vagava, a passos lentos... em direção ao sul, onde a escuridão se estendia sem fim, e contrariando todos os seus instintos, indo para longe do calor de sua casa, mas desejando acima de tudo ser feliz, e sendo assim, descobrir o que por vezes a noite soube ocultar.

Os fones altos demais transmitiam uma música ao qual Mel não se importava em prestar atençao - mesmo que fosse quase impossivel -, mas ela estava tão submersa no insano desejo de apenas andar, andar, andar... que nem mesmo a lua mais linda de todo o ano era capaz de chamar sua atenção, e enquanto vagava, ela se sentia livre, como um pássaro liberto após anos aprisionado, ela se sentia livre para voar, e suas asas gritavam desejando se abrir.

Seu rosto baixo e de natureza perfeito sorria e chorava em máscaras sem cor. Seus olhos sombrios e frios, alegres e sorridentes, se distorciam a medida que ela seguia sem rumo, e as palavras contidas por anos rastejavam lentamente em direção ao seu peito.

Ela estava linda vestida naquele vestido preto que deixava à mostra seu colo, que ia até suas mãos, onde lindas luvas de crochê de fio também pretas davam um ar meigo e sombrio, o vestido se arrastava no chão, cobrindo seu salto alto preto e fino. Ela adorava se vestir assim, ela se sentia livre, era como uma proteção, onde a dor não chegava nem saia. Ela estava em seu luto, e em seu luto ela chorava por tudo, pela morte da vida que um dia ela julgou existir dentro dela, mas ela era feliz, ela respirava tranquilidade, e esperava incansávelmente pelos dias que se sucederiam aquele.

Por um segundo ela se sentiu sã, sua mente não estava trabalhando, pertubando-a, atormentando-a... ela estava sozinha, longe de tudo e de todos, ela sabia que a noite seria passageira, mas ela realmente se sentia feliz, um peso morto de angústia fora retirado de suas costas, e ela agora andava calmamente.

Alguns passos depois ela se vê no meio de uma cidade morta, nada a sua volta, nada a sua frente, e nada para voltar. Como uma peregrina perdida no mundo dos sonhos, e ela sorriu a mera ideia de viver lá para sempre, no vazio, e nunca mais ser uma escrava dos seus medos.

Rota 222 - um paraíso em azul.

Ela chega ao parque da cidade - ironia dizer "parque" já que aquilo mais parecia um cemitério-, uma névoa branca cobrindo tudo, um frio de ranger os dentes e tudo em escala cinza, a mais linda obra de arte já feita pelo homem em homenagem a solidão. Ela se via presa em um quadro, um quadro pintado pela própria tristeza, ela se sentia presa dentro dela mesma, como uma viagem ao interior. Mas se via distante de tudo, como se uma muralha a separasse dela mesma... ela estava sozinha, não apenas ali, mas na vida.

Cantarolando músicas dela mesma, Mel brincaVA no balançador, indo e voltando, como ela desejara por tantas vezes que o tempo o fizesse, voltasse.

Deitada sobre o banco da praça, a admirar pela primeira vez naquela noite a lua, ela se sente triste, pois o que mais desejou, ser sozinha e feliz, não fora o suficiente, ela continuava a sentir um vazio dentro de si, um fogo que não queimava, a chama de gelo apagada pela vela da sabedoria, ela estava fria, estava morta. E aquela solidão, aquele vazio, a preencheu de tal forma que ela não conseguia não viver sem ele, e estava dificil respirar, e estava dificil não segurar as lágrimas, ela precisava chorar, mas elas não vinham, ela se sentia sozinha, ela queria chorar. Onde está o mundo quando você precisa?

Gemidos surdos sufocavam seus gritos, o ar havia morrido a medida que ela se sentia distante. Seus olhos choravam de angústia, ela desejava viver, mas estava tão distante... E não tinha forças para voltar, e pra onde voltar? e pra quem voltar? Ela nunca fora a escolhida!

Correndo em direção contrária ao que um dia ela desejou, ela estava perdida, e nem mesmo seu espirito conseguia escapar, a escala cinza se resume a preto, e ela retorna a um mundo sem cor, que por tantas vezes desejou ser seu único abrigo.

Caída de joelhos no meio da rua, com as mãos em seu peito, tentando como um último esforço arrancar o coração que agora a sufocava e queimava em eterna agonia. Ao seu redor não havia mais nada, ela estava em um buraco negro, na vasta e imensa solidão, ela desiste, e desaba, deixa que a vida vá e que por sorte, a leve com ela, um último suspiro e então... a vida se acaba. E seus olhos se abrem.

Ela se vê diante dela, como um espelho refletindo a discórdia, ela está deitada, fria, sozinha, abandonada, com o medo refletido em seus olhos, olhando ao redor percebe que muito além o sol nasce, e as pessoas voltam ao ritmo normal.

Horas depois sai no jornal - Jovem encontrada morta no meio da rua, causa da morte - desconhecida.

E uma alma peregrina por entre as ruas de uma cidadezinha qualquer a procura de um coração que reconheça seu valor e a faça viver... Mas pela primeira vez em toda a sua vida, ela se sentia livre.