Encontro póstumo

Parado em frente à morada fúnebre de tantos, Fábio apenas observa. Àquela hora ninguém mais pode ser avistado, são 00h30min. A rua está deserta. Ele olha e contempla as paredes brancas do pequeno cemitério rusticamente pintadas. Decide adentrar. O portão enferrujado, marcado pela ação inclemente do tempo, está apenas encostado. Cautelosamente entra, mas sem medo. Não, nesse momento seu coração desconhece esse sentimento. Entra. Túmulos espalhados desordenadamente dificultando os passos das visitas regulares dos vivos que buscam conforto em rezar pelos seus mortos. Fábio caminha lentamente. Árvores vivas e principalmente as mortas com galhos secos e retorcidos adornam o cemitério, dando-lhe um aspecto mais sombrio. Ri das pessoas supersticiosas que temem lugares como aquele até à luz do sol, imagine com a fraca luz da lua.

Lembra-se das histórias de almas e espíritos, dos barulhos estranhos que muitos juram ter ouvido. Existem poucas casas nas redondezas e para aqueles que gostam de uma estorinha de assombração é só procurar alguns dos moradores, estão sempre dispostos a relatar as supostas experiências sobrenaturais que vivenciaram.

Fábio já foi muitas vezes àquele local, muitas vezes desde a morte de sua noiva, Ana, ou Aninha como chamava carinhosamente quando estavam a sós. Já faz mais de um ano desde que ela perdeu tragicamente a vida, vítima da bala de um louco durante um assalto. O assassino foi preso e diferentemente do que acontece na maioria dos casos semelhantes neste país, permanece preso. Expressou várias vezes o seu ódio. Assim que recebeu a trágica ligação parou a conversa que estava mantendo com os amigos e saiu desesperadamente. Chegou ao hospital, para onde foi levada, em questão de minutos. Com um tiro no peito Ana não resistiu. Naquela noite o desespero o consumiu. O casamento seria para dali a três meses. Como o destino prega tristes peças.

Já se passou mais de um ano, e não esquece. Naquele dia em especial decidiu visitar o túmulo da noiva à noite. Ainda a ama. Não teve nenhum relacionamento desde o acontecido. Tantas vezes ouviu “esquece”, “segue com a sua vida”. Seguiu. Mas ela ainda adorna os seus pensamentos. Trabalha. Estuda. Mas não se diverte. Um amor digno das peças de Shakespeare. Está diante do túmulo da noiva. Sempre trás flores. Não ascende velas, pois não é católico e não tem religião. Mas no seu íntimo gostaria de ter em que acreditar. Gostaria que os mortos pudessem voltar. Queria o que todo mundo quer ao perder um ente querido, dizer ao menos pela última vez que a ama. E que sempre a amará.

Para. Observa a foto de sua linda noiva posta acima do túmulo. Cabelos negros e pele branca. Nariz pequeno. Traços delicados. “Como eu te amei”, sussurra de olhos fechados. Uma lágrima corre pelo canto do seu olho direito. Não a pôde conter. Mais uma, dessa vez pelo olho esquerdo. Chora. Não emite ruídos, apenas chora. Leva as duas mãos ao rosto. Ainda a ama muito.

Parado, em pé, ante o túmulo, sente um pequeno sopro no ouvido direito. Vira-se de olhos arregalados. A face molhada. Nada vê. Volta o olhar para o túmulo, e do lado direito vê alguém familiar. Com a face serena Ana o contempla. Ele está incrédulo. Isso não é possível. Ela está morta. Sente medo. Porém o desejo de conversar é maior:

- Ana? Como?

- Ouvi teu choro. Te observo desde o ocorrido. Siga em frente. Continue com a sua vida.

- Não consigo. Você está em meus sonhos.

- Eu estou em você e sempre estarei.

- Eu queria ter te dito pela última vez que a amo muito e sempre amarei. Me fez muito feliz. Está em meu coração.

Caminhando em direção a Fábio, ela envolve os alvos braços em torno do seu pescoço. Puxa o rosto dele para junto do seu e diz:

- Saiba que o teu amor me proporcionou paz de espírito. Parti feliz por saber que enquanto vivia fui a tua felicidade. Continue a viver por nós dois. Eu te amarei eternamente.

Os lábios se tocam. Um beijo breve que poderia ter perdurado por toda a eternidade. Lágrimas correm dos olhos fechados de Fábio. Ana desprende os braços e se afasta. Some. Uma sensação estranha envolve o coração de Fábio. Paz? Paz. Há muito tempo não sabia o que era isso. Olha mais uma vez o túmulo. Leva a mão direita ao peito esquerdo. Os batimentos cardíacos estão mais lentos. Normais. Baixa a cabeça. Olhos fechados. Um pequeno sorriso no canto direito da boca. Sussurra o nome de Ana. Ergue a cabeça e vira-se. Vai embora. Agora sabe que pode continuar a viver. Sem remorso. Nem peso na consciência. Ela tinha certeza de seu amor.

Parada em pé ao lado da sepultura, Ana o observa se afastar. Está feliz com aquele encontro póstumo. A face serena. Então desaparece.

FIM.

Aermo Wolf
Enviado por Aermo Wolf em 20/04/2012
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