O Gato Preto

Nota explicativa

Quantos leitores, alguma vez, já não se perguntaram ao final de uma história que lhes tenha agradado particularmente, o que aconteceu, ou aconteceria (a parte o desfecho que tiveram) com aquele ou aqueles personagens, já que seu autor deixou margens para semelhante especulação? É o que tentei descobrir, partindo do final do clássico conto “O Gato Preto” de Edgar Allan Poe, quando o protagonista, em virtude do assassinato da esposa, é finalmente apanhado pelos policiais no porão de sua casa e conduzido à prisão. Pode parecer, para alguns, um exercício vão. Sim, até posso concordar, e provavelmente não o repetirei, mas devo dizer que a experiência foi bastante divertida. Já que, não devemos nos esquecer, o ato da escrita, a despeito da seriedade com o qual deve ser encarado, pressupõe também um componente de diversão e ludicidade. Neste sentido, compus um conto-roteiro ou roteiro-conto, para tentar emprestar (se é que é possível ainda) algum outro ângulo de abordagem à matéria e ao tratamento soberbo com que o imenso Poe redigiu sua pequena obra-prima.

(...) contudo, tão certo quanto a existência da minha alma, a perversidade é um dos impulsos primitivos do coração humano – uma das faculdades ou sentimentos primários e indivisíveis, que dirigem o caráter humano (...)

Edgar Allan Poe – O Gato Preto

Dois cineastas, diretor e roteirista, desenvolvem o argumento do que deverá ser seu novo projeto cinematográfico.

– Bem – começou o diretor. – Podemos abrir a cena focando um corredor comprido, parecido com o túnel de uma mina. As paredes enegrecidas, cheias de nódoas, mal deixam distinguir a pintura original. Bicos de luz tortuosos pendem do teto, espalhando uma luminosidade difusa, cor de cera, mas em número insuficiente para dissipar a penumbra reinante.

Bem ao fundo, dobrando o corredor, surgem (desfocadas) duas silhuetas. Progridem lentamente em direção à câmera, que vai corrigindo aos poucos, revelando, quando já estão bastante próximas, um padre vestindo uma batina nova. Um grande crucifixo prateado desce até abaixo de seu peito. Traz uma Bíblia revestida em couro negro na mão direita. É um sujeito de meia-idade, de compleição robusta. Movimenta-se com passos elásticos, afobados, como os de quem tem pressa em se livrar logo de uma tarefa desagradável.

Um passo a frente, arfando, contrastando pelo desmazelo da figura, um velhote com enormes costeletas grisalhas claudica dificultosamente. Veste um uniforme de carcereiro muito puído, dando a impressão curiosa de estar atravessado no corpo.

A estranha dupla segue por novos corredores, parecendo nunca chegar ao seu destino.

Desde a abertura, podemos ouvir, sobre a cena, a voz do narrador.

Você faz o narrador – disse ao roteirista.

Roteirista/Narrador: – Sou hoje, homem de mil ofícios e múltiplos talentos. Tantos quantos pode suportar a precisão de se fazer coisas; e estou sempre onde meus serviços possam servir a alguma necessidade que requeira urgente atendimento. Do que precisar, recorre a mim, caro amigo. Servi-lo-ei num tudo, – desde que o queiras. Também, desde que seja assim, o crédito será todo teu. E nada peço-te que, com real desprendimento, não possas ofertar ou simplesmente recusar. Podes avaliar as vantagens de semelhante consórcio? Não me queiras mal, caro amigo, mas creio que não o possas. Contudo, acatarei de bom grado tudo o que me solicitares, e, depois, se desejares, despedir-me-ei sem nada exigir. Mas talvez gostasses de saber como e em que circunstâncias tornei-me, de muitos modos, imprescindível àqueles que legitimamente carecem de auxílio para alguma obra ou missão desesperada, e mesmo temerária.

“Não sei por que foi, digo, por que abracei o sacerdócio. A verdade é que me fiz padre. Desconfio que foi devido à indolência e a algum pressentimento escuso que me impedi de considerar outras alternativas profissionais. Com uma vocação menos que medíocre para o que quer que seja considerado imediatamente útil, o sacerdócio caiu-me como uma luva – já que, na prática, seus resultados não requerem uma apreciação rigorosamente efetiva. Por isso, lidar com problemas de cunho moral, conquanto estes não impedissem a manutenção mais trivial do que é considerado por todos como o ‘correto’, satisfazia-me e me deixava muito à vontade para fazer, aos olhos do mundo, e até com alguma competência, meu pequeníssimo papel na grande farsa. Foi então quando tudo mudou. Ou melhor, foi como tudo mudou...”

– Ok. Neste ponto, enquanto o narrador continua sua fala, o filme desvanece e corta para uma estação ferroviária: uma pequena multidão se acotovela junto a um trem estacionado que, inusitadamente impedido de prosseguir seu caminho, ainda solta fumaça de suas caldeiras. Todos olham, pasmos, para suas rodas ensanguentadas. Detalhe de uma Bíblia rasgada, esquecida sobre os dormentes. O vento sopra suas páginas empapadas de sangue.

R/N: – “...Um incidente lamentável, uma queda estúpida, um tropeço nos dormentes, justo no momento em que o comboio começava a se deslocar, – uma morte terrível sob uma tonelada de engrenagens privou a Igreja de um excelente servidor e, a mim, da minha rotina pacata numa pacífica e sonolenta paróquia suburbana. Acontece que o vitimado era o padre encarregado, no presídio da cidade, de tomar a confissão dos condenados à pena de morte e ministrar-lhes os ritos post-mortem. E, como um condenado aguardava sua vez para aquela mesma tarde do acidente, como sua execução fora meticulosamente preparada e não se admitia a menor quebra de protocolo, o que não deixava tempo à Igreja para deslocar da capital um sacerdote adequadamente preparado, fui encarregado, pessoalmente, de tomar-lhe a confissão...”

– Neste ponto, o filme desvanece outra vez e corta para uma colina verdejante, inundada de sol. O narrador, vestido de branco dos pés à cabeça, sentado numa espreguiçadeira, fala para um jovem, também sentado. Ele ouve com meticulosa atenção. Por vezes, faz ligeiras anotações num bloco, que tem apoiado sobre os joelhos.

A câmera, num plano aberto, faz um giro de 360 graus até fechar num close médio do homem que está narrando. Vemos que se trata do padre da cena de abertura. Está bastante envelhecido.

R/N: – “...Grande parte da minha profissão consiste em preparar, mais que para a vida, as pessoas para a morte, já que a doutrina cristã, em sua feição eclesiástica, é estruturada quase que inteiramente com o alicerce de juízos negativos. Comunica-nos o que não devemos fazer. Como se estivesse subentendido em semelhante proibição que o restante, o ‘não vedado’, contivesse toda a experiência positiva da alma. Ora, será assim mesmo? Será que, sem nada aventar acerca desse ‘caminho do bem’, tal cristianismo se ache no direito de prescrever preceitos e regras de conduta e anunciar-se senhor do que não comunica?

“Mas o que estou dizendo! Na época não tinha o hábito de blasfemar. Mas confesso que, ao receber o comunicado, proferi lá minhas diatribes. Como então tocara, justamente para mim, o que era então considerado por todos como invulgar teste de fé, e sobremodo da razão mais elementar e da mais simples humanidade! Situação paradoxal, em que a supressão sumária de uma vida tinha que ser, de uma forma implícita, justificada (no caso do confessor), para a própria vítima, como necessária e até mesmo desejável! Estava com medo...”

– Finalmente, o velho carcereiro encaixa a chave na fechadura, abrindo a cela. Afasta-se para o lado para o padre entrar.

Agora nos revezamos. Você começa com o carcereiro.

Roteirista/Carcereiro (arfando): – Aí está, Padre. Disse-lhe que o infeliz não ia a parte alguma. O senhor não precisava me fazer correr daquele jeito. Por todos os diabos! Oh, perdão, Padre.

– O padre faz um sinal com a mão, dizendo que não foi nada. O carcereiro tranca novamente a cela, deixando-o lá dentro com o preso.

R/C (saindo): – Vou estar aqui ao lado, Padre. Quando o senhor terminar, basta dar um grito.

– O padre esquadrinha a cela com o olhar. Vê, a um canto, oculto pela penumbra, um vulto esguio deitado sobre o catre. Eu faço o padre. Você fica com o preso.

Diretor/Padre (vacilante): – Meu filho, você está acordado? Meu fi...

Roteirista/Preso (virando-se no catre): – Ora, mas que diabos, o que temos aqui?!

– O preso levanta-se da cama. É um homem de uns trinta e poucos anos. Alto, mas tão incrivelmente descarnado que parece ter sido esticado numa prensa, ao qual o pijama listrado da prisão empresta um efeito esquisito. Uma cicatriz pavorosa, de uma tonalidade escarlate, muito viva, cruza-lhe o rosto, descendo desde o alto da nuca raspada até acima da bochecha direita. Tem olhos fundos, irrequietos e injetados como os de um beberrão contumaz.

R/P (debochado, quase roçando sua cara na do padre): – Humm, deixe-me dar uma espiada em você... (gira em torno, avaliador) Hum-hum. Tem ombros largos para um papa-hóstias. E posso apostar que tem pernas fortes debaixo destes vestidos. Que figuraça! Diga-me uma coisa, Padre, como é usar vestidos? Isso não é perigoso? Quero dizer, isso não faz o camarada se sentir um pouco mulher? Começar a ter pensamentos estranhos. Entende o que quero dizer? (pisca, malicioso, e solta uma gargalhada sonora) Mas você não parece ser do tipo que se acocora para fazer xixi. Você é mesmo um papa-hóstias? Será que não travestiram de padre um estivador do porto só para fazer pirraça com a minha cara? Hein? (abusado, dá uma profunda fungada no padre) Não, acho que não. Você cheira a ranço, a mofo de igreja, a excremento de rato, misturado com água benta. Eca! Ô fedentina excomungada!... Sim, você é legítimo, quanto a isso não resta a menor dúvida... Mas então me diga. Por que raios me mandaram um padre?!

– Concluída sua avaliação, encosta, com hostilidade, seu rosto no do padre. Este permanece imperturbável. Mira o condenado com um olhar compassivo. Faz bem o seu papel.

R/P (gritando): – Carcereiro. Ô, carcereiro! Aqui, seu bode velho!

– O carcereiro, esbaforido, aparece, vindo da sala da carceragem, onde estivera cochilando.

Eu faço o carcereiro.

Diretor/Carcereiro: – O que houve! Quem chamou?

R/P: – Quem mais haveria de ser. Belzebu, sua anta? Abra a porta de uma vez. Não vê que o padre está atrasado para a missa!

D/C (ignorando-o): – Está tudo bem com o senhor, Padre? (o padre confirma com a cabeça) E você, condenado, basta de escândalo. Trate de confessar seus pecados, tim-tim por tim-tim, para o padre. E quem sabe nosso senhor Jesus Cristo tenha piedade da sua alma de víbora. Ou acaso já esqueceu que tem um encontro marcado com o carrasco esta tarde?

R/P: – E o que tem você com isso, projeto de asno? Deixe que com carrasco me entendo eu.

D/C: – Padre?...

– O padre diz que está tudo ok. O carcereiro, severo, lança um último olhar ao preso e, coxeando, volta para o seu lugar.

R/P (andando pela cela feito um animal enjaulado): – Muito bem! Muito bem! Agora tenho um padre nas minhas pegadas. Não me faltava mesmo mais nada. Será que nunca vou poder estar só! Ó, vida, sete vezes maldita! Quando vai me dar sossego? É possível que haja alguma privacidade na tumba. Mas, infelizmente, prevejo que nem aí. Pois é certo que vão me jogar numa dessas fossas coletivas, com toda a sorte de escória, para onde mandam sempre a ralé. A mim, que já tive posses. Que tinha um nome respeitado. Que já dei e fui a jantares pomposos. Que emprestei meus ouvidos às palestras frouxas de janotas. Que atendi, pressuroso, aos caprichos fúteis de senhoras coquetes. A mim, a quem até os ricaços tiravam o chapéu... Não acredita, Padre? Mas não se engane. Não tome esse focinho (aponta para o próprio rosto) como se sempre tivesse sido assim. Isto que vê (indica a cicatriz) foi uma gentil cortesia do carrasco. Já foi açoitado com uma vara até perder os sentidos? Não, claro que não. Que tolice a minha. Senão não ostentaria esse ar altaneiro de quem está acima do bem e do mal. Bem, quanto ao resto, oito anos nesta toca fétida, na companhia dos ratos, trataram de arranjar... (para de repente no meio da cela, abre os braços num gesto teatral) Vê, Padre, o que é a humanidade?

– O padre, imóvel num canto da cela, observa, hipnotizado, o excêntrico condenado. Não esperava tamanha loquacidade e tanto “espírito” de um condenado à pena capital. Acha tudo muito interessante, contudo, precisa fazer seu trabalho. Eu assumo o padre.

Diretor/Padre: – Tem razão. A humanidade! No entanto, é o que temos, é o que somos. E agora, meu filho...

R/P (categórico): – Não me chame de filho. Se quer conversar comigo, demonstre ao menos algum respeito. Trate-me pelo nome.

D/P: – Queira me perdoar. É o hábito. Bem, meu caro... (consulta suas anotações sob a capa da Bíblia) Edgar...

R/P: – Não, não, não. Só Edgar. Trate-me apenas por Edgar.

D/P: – Como quiser... Edgar. Sou o pa... melhor: Germano. Se estiver bom para você.

Roteirista/Edgar: – Humm, gostei disso, gostei mesmo. Só não queira bancar o espertinho e vamos nos dar bem (Germano olha-o com curiosidade) E então, por onde começamos? Tudo isso é novidade para mim. O que quer que eu diga?

Diretor/Germano: – Você nunca se confessou antes?

R/E: – Fala a sério?!... Oh. Mas, enfim, sejamos complacentes. Peço apenas que você me dê uma boa razão para fazer uma tolice dessas e talvez eu possa reconsiderar.

D/G (solene): – Para trazer alívio à sua alma atormentada, quem sabe?

R/E (com um espanto irônico): – Oh, que coisa! Então é isso que pretendem os beatos, as “madalenas-arrependidas” quando esfolam os joelhos na tábua dura do confessionário. “Aliviar suas almas atormentadas”. Hum-hum, agora compreendo. Mas, Padre, responda-me com sinceridade, por favor. Baseado em sua experiência profissional, isso é mesmo verossímil? Não me refiro àquela sensação cínica e pueril de alívio que vem de confessar nossas faltas a um representante oficial da comunidade, neste caso, a Igreja –, e por ela ser absolvido. E nisso encontrando amparo espiritual para reconhecer nossa sordidez, nossas baixezas, como coisas dignas de serem experimentadas. Quando a vergonha, o senso do ridículo – sem mencionar a humildade – mandam extirpar como a um foco canceroso.

D/G (com bonomia): – Que ideia! Quem senão um caráter absolutamente pervertido buscaria sustentação para sua perfídia numa coisa dessas! Você está enganado, Edgar. É justamente o oposto disso que as pessoas tementes a Deus e cônscias de seus erros procuram ao se confessar. Querem elas um apoio, sim. Mas para fortalecê-las; para que possam assim perseverar sobre a humilhação e o sofrimento que lhes traz o seu comportamento torpe.

R/E (sarcástico): – Vejo que fez a lição de casa. Mas já esperava por isso. Ora, Padre, por quem me toma? Sou um homem morto. E, em consideração a isso, penso que tenha direito a alguma originalidade.

D/G: – Mesmo que isso implique em distorcer a verdade?

R/E (na defensiva): – Ôpa! Alto lá. Estamos falando no que pode, para usar suas palavras, “aliviar a alma atormentada”. Verdade já é outra coisa bem diferente.

D/G (bem-humorado): – E o que, melhor que a verdade, pode fazer isso?

R/E (contrariado, aborrecido com a boçalidade de Germano): – Você não está entendendo nada – o que não é de se admirar –, ou então eu não compreendo absolutamente o propósito de sua visita. Se não está aqui, me privando dos meus últimos momentos, quando posso estar a sós com minha consciência, para ouvir minha confissão, e com isso, segundo seu curioso ponto de vista, “aliviar minha alma atormentada”, para que veio então?

D/G: – Não existe mal entendido. Estou aqui, efetivamente, para confessá-lo.

R/E: – E o que mais? Complete o pensamento.

D/G (suspirando): – Certo. Para trazer, por intermédio da confissão, alívio à sua alma atormentada. Está bem assim?

R/E: – Engano seu, Padre. Está tudo errado. E vou dizer-lhe o porquê. Há aqui um grotesco erro de perspectiva. Supondo, veja bem, apenas supondo que minha pobre “alma atormentada” necessite mesmo ser desafogada; e se de fato você está sendo sincero quando diz que o seu propósito é o de aliviá-la, então haverá de admitir que eu, na condição da parte mais interessada, deva saber como ninguém a melhor maneira de conseguir isso. Correto?

D/G (atordoado): – Nã... não. Pode parecer, mas não é isso. Você está distor...

R/E: – Ou é isso ou então estamos ambos perdendo nosso tempo aqui, pois não temos no que servir um ao outro. Eu não alcançarei a paz de que preciso, e você terá falhado em sua missão. De qualquer modo, terei que morrer com isso. E você, Padre, poderá viver com isso?

D/G (reagindo): – Não pense você que pode me manipular. Não agirei contra os sagrados ordenamentos da confissão só para dar razão a essa sua teoria absurda.

R/E (com veemência): – Ora, faça um favor a nós dois, Germano, deixe de lado por um instante sua condição de sacerdote. Pare de tentar defender o indefensável. O que significam, afinal, seus preciosos dogmas senão a prova de uma arrogância satânica! O que existe de absoluto neste mundo, Padre? Nada! Nada! Miseravelmente nada! Tudo está aí para ser desmentido. E quando outra vez se consolidar como verdade inquestionável, estará novamente maduro para ser negado. Por isso, vale mais a pena, e é infinitamente mais humano prestar atenção às aflições falíveis de um homem perturbado, a poucas horas de sua morte; e que sabe que o responsável por sua desgraça vai continuar deitando sua asa negra sobre seu espírito se não for aniquilado. (Edgar vai se prostrar aos pés de Germano) Me prometa, Germano, que vai dar um fim naquele demônio. Imploro, não ao padre, mas ao homem que há em você. Ajude-me, meu irmão!

D/G (perplexo, colocando as mãos sobre os ombros de Edgar): – Não compreendo! Como pode ser isso? Do que você está falando, criatura de Deus?!

R/E: – De uma maldição, Padre. De uma terrível maldição. (agarra-se à batina de Germano) Oh, livrai-me das garras do demônio! Tenha piedade da minha miséria!

D/G (comovido): – Descanse, meu filho. Prometo que vou ajudá-lo. Deus é infinito em sua misericórdia. Vai olhar por você. O que tem a fazer é se arrepender de seus pecados e orar. Oremos juntos.

R/E (levanta-se, atônito): – Orar?! É isso o que você me aconselha? Bobagem! Orar? Como poderia, sabendo que ele vive, que me espreita. Que só está esperando eu ser atirado para o fundo de uma cova para ir se aninhar sobre meu peito. Oh, como poderei suportar sua presença odiosa; o exalar de sua respiração fétida, bem ali, junto ao meu rosto! Oh, suas garras aguçadas dilacerando sem pressa minha carne vulnerável! Diga-me, Padre, você acha possível que ainda se sinta dor depois de se estar morto? Ao longo desses oito anos intermináveis, só tenho feito pensar nisso. Não houve um único dia, uma única hora que fosse que não tenha me debatido com a possibilidade desse horror ser verdadeiro. Tentei todas as alternativas. Fiz uso de todas as hipóteses. Não houve uma única, por mais inconcebível que fosse, ou mais enfronhada nos conceitos da ciência empírica, nos dados da razão objetiva, a que não ousei aplicar meu raciocínio na tentativa de desfazer a lógica de minhas impressões aterradoras. Sim, uma lógica. Tão demonstrável quanto um princípio matemático, que, no entanto, ultrapassa as leis do universo físico e exorbita no reino do imponderável! Ajude-me, Padre!...

– Edgar vai ajoelhar-se novamente aos pés de Germano. O seu discurso grandiloquente e absurdo causou funda impressão no padre que, embasbacado, olha-o como se vislumbrasse a própria personificação do tormento.

Edgar, diante da comiseração algo cômica de Germano, começa a relaxar. Paulatinamente, seu rosto vai se abrindo num sorriso, até se transformar numa gargalhada estentórica, insana e, apesar disso, insuportavelmente debochada.

Germano, a princípio, encara aquela reação inopinada com uma atitude piedosa. Mas logo cai em si. Agastado, afasta Edgar com um safanão. Edgar roja-se no chão, estourando de rir.

D/G (possesso): – Maldito tratante! Seu debochado! Quero mais que sua alma queime no inferno. Deus me perdoe! Mas é isso que você merece. Debochado! (dirige-se para a porta da cela) Carcereiro! Carcereiro!

– O carcereiro aparece, como da primeira vez, numa atrapalhação de fazer rir.

Diretor/Carcereiro: – Estou indo, estou indo! (encaixa a chave na fechadura) Por deus, Padre, o que está acontecendo aqui?! O que esse excomungado andou aprontando dessa vez?

– Germano sai da cela, que é trancada.

R/E (ensandecido, atirando-se contra as grades): – Germano! Padre! Germano! Não vá! Prometa-me antes que vai matar o demônio! Ele ainda está lá, eu sei! Mate-o!

– Germano, cuspindo fogo, embarafusta pelo corredor. O pobre carcereiro, baratinado, vai atrás, manquitolando.

Os gritos de Edgar, de mistura com suas risadas, ressoam, ecoam pelo labirinto de corredores:

“Mate-o, Padre! Mate o demônio!!!”

– A cena se desenrola tal qual Germano a descreve:

“Dia nublado, triste e melancólico. Uma cerração fria se espalhava, parcimoniosa, sobre pessoas e coisas.

“Edgar, algemado, foi conduzido por dois guardas armados de fuzis através do pátio da prisão até o cadafalso, erguido aos fundos, rente aos muros. A assistência de tão bizarro espetáculo era quase toda formada pelo corpo administrativo do presídio, soldados e demais funcionários. Havia também alguns dignatários e convidados especiais da municipalidade. Todos aguardavam de pé, sisudos e silenciosos.

“Os guardas entregaram o preso para as mãos implacáveis do carrasco, que já o aguardava sobre o estrado do cadafalso, numa postura marcial. Conduziu um Edgar circunspecto, empertigado, disposto afinal a enfrentar seu duro destino com bravura, até o ponto exato, sobre o alçapão. A corda balançava sinistramente sobre a cabeça do condenado.

“Enquanto o verdugo ajustava a corda em torno de seu pescoço, Edgar passou um olhar penetrante pela assistência. Deparou comigo, aos fundos, afastado do público. Eu o observava compungido. Estava gravemente arrependido de tê-lo abandonado sem tomar sua confissão. Sem ao menos tentar consolá-lo com palavras edificantes. Deixara-me dominar pelo meu péssimo humor e me perdera em razão de minha inexperiência diante do sofrimento humano. Edgar sorriu com escárnio, como se adivinhasse meu pensamento. Então, seus lábios se moveram, pronunciando uma frase muda, mas perfeitamente compreensível e, para mim, dadas as circunstâncias, irremediavelmente fatídica.

“‘Mate o demônio!’, disse-me ele. ‘Mate o demônio!’ Repeti eu, num eco, sem saber o que fazia.

“E, como para pontuar minhas palavras, o carrasco puxou a alavanca do patíbulo com um movimento enérgico, abrindo o alçapão sob os pés do condenado. Edgar desapareceu nas suas profundezas, como num passe de mágica. O silêncio se fez mais pesado, mais opressivo, mais lúgubre.

“Terminado o macabro espetáculo, o público começou a se dispersar. Apenas eu permanecia onde estava. Como num pesadelo, não conseguia desviar os olhos da corda retesada, que oscilava levemente, sacudida pelos últimos espasmos do morto...

“Como o próprio Edgar previra, ele foi atirado numa vala comum, sem maiores considerações. No entanto, foi sepultado só. Ao menos nisso a justiça dos homens não o desapontou. Seu enterro foi triste e solitário, envolvido por uma atmosfera de clandestinidade que desolou meu coração. Contava ao menos deparar com algum conhecido seu, talvez um amigo erradio. Mas nem sinal de vivalma, além de mim e dos coveiros que, concluído seu trabalho, trataram logo de se abrigar do chuvisco insidioso, que principiou a cair de um céu cor de chumbo, pejado de nuvens.

“Permaneci por mais alguns instantes ao pé da sepultura, dizendo uma prece muda. Por fim, a chuva, que engrossara de repente, também me expulsou dali...

“Voltei para a paróquia levando debaixo do braço o processo com a condenação de Edgar. A chuva não tardou a se transformar numa furiosa tempestade. Relâmpagos cortavam o céu acima da igreja, roçando quase suas altas torres; lançando chispas contra os vitrais da sacristia, gerando uma luz tétrica, tão mais intensa que a luminosidade baça das velas que não tive dificuldade em decifrar aquelas letras miúdas, que descreviam o processo, o julgamento e a condenação de um homem à morte pela forca.

“O que pude descobrir então me deixou estarrecido; uma centelha elétrica se espalhou pelo meu corpo, arrepiando cada centímetro da minha epiderme; alvoroçando minha alma com uma alta voltagem de impressões caóticas, que uma angústia mortal, qual uma nuvem negra que se evola de um incêndio violento, desceu sobre meu espírito.

“Sacudi a cabeça, como se pudesse dessa forma me livrar da sensação dolorosa que me causara a simples leitura daquele processo. Refleti que não tinha diante dos olhos uma obra de ficção, meramente fruto da fantasia imaginativa de um escritor. Tinha antes, embora vazada numa linguagem técnica, desapaixonada, como de ordinário são redigidos os processos-crime, um documento humano, onde estava descrita com minúcias a loucura paranóica que levou um homem a cometer um assassínio monstruoso, sua subsequente condenação e execução na forca.

“A história, contudo, como o próprio Edgar fez questão de frisar em seu julgamento (numa atitude de deboche, está claro) – mas penso eu que também para persuadir a si mesmo das motivações absurdas de seu crime – é mais o resultado bizarro de uma paranóia provocada pelo álcool do que pela comprovação manifesta de uma presença maléfica, num ato de vingança. No entanto, a recomendação que por duas vezes me fizera ele, em momentos de singular comoção, – instantes antes de ser conduzido ao cadafalso, e já sobre ele, com a corda em volta do pescoço – descartaram completamente de meu espírito a possibilidade de uma peça macabra que o condenado quisera me pregar.

“Sim. Para meu espanto, estava convencido da veracidade da história. Estava?! Oh, sim, total e definitivamente convencido. Tanto assim que, mal clareara o dia me vi forçando a porta da antiga moradia de Edgar. O cenário medonho, onde, segundo suas alegações, o demônio o levara a assassinar a esposa.

“O motivo é algo dúbio, em razão mesmo de sua flagrante inverossimilhança. Diz respeito ao fato de Edgar, numa de suas proverbiais bebedeiras, ter arrancado um dos olhos de um soberbo gato preto, até então seu dileto animal de estimação, e posteriormente enforcado o pobre numa árvore do quintal.

“Como dizia, forcei a porta e entrei. O lugar estava em ruínas, pois havia já oito anos que vivalma não adentrava em suas dependências. Portanto, tudo estava tal qual Edgar deixara antes de ser conduzido à prisão para expiar seu horrível crime. Como um sonâmbulo, sem atinar com o que fazia, vaguei por um tempo que me pareceu interminável, esquadrinhando cada canto da decrépita mansarda, sempre a me acompanhar um profundo sentimento de irrealidade. Realmente não saberia dizer quanto tempo estivera assim. Sei apenas que um movimento, não mais furtivo ou substancial que uma sombra, como a de um gato correndo ao longo da parede, no primeiro andar, logo abaixo das escadas, arrancou-me do meu torpor. Voltei como volta um nadador depois de demorado mergulho e constata, para sua total surpresa, que está perdido em pleno mar aberto, e não encontra nenhum ponto de referência que possa servir-lhe de guia, que lhe indique o caminho de volta. Estava assim, perdido num pesadelo, no limiar de coisa nenhuma. Tudo quanto era nervo, fibra sensível em mim gritava para que retornasse o mais depressa à consciência; para que me salvasse daquele buraco negro que se alastrava, mais e mais... Então, um baque, um som como o de um objeto pontiagudo caindo pesadamente sobre uma superfície esponjosa, lançou-me definitivamente com os dois pés na realidade. Desci as escadas como um alucinado, correndo na direção de onde vieram os sons. Num átimo, descia a escada do porão, único lugar da casa onde ainda não estivera.

“O que vi então me fez parar a meio do caminho com o coração pulsando dentro do peito feito um petardo mal deflagrado, antes de explodir. O que vi, juro por tudo quanto existe de mais sagrado, foi Edgar descarregando o machado sobre o crânio de sua mulher! E, terminado seu medonho serviço, ergueu os olhos na minha direção com um ódio indescritível. Seus lábios se moveram e outra vez ouvi o seu apelo ensandecido: ‘Mate o demônio!’ E, com o machado ainda bem firme na mão, do qual escorria um sangue espesso, avançou sobre mim. Incapaz de recuar, ergui o braço debilmente para me proteger do golpe... que nunca veio. Abri os olhos. Estava novamente só no porão. Tivera uma alucinação. E, ao invés de deixar às pressas aquele antro amaldiçoado, desci os degraus que faltavam e logo estava no meio da adega. E como para aumentar propositalmente o meu horror procurei avidamente a parede de tijolos, atrás da qual Edgar, depois de matar a esposa, resolveu emparedá-la para se livrar do cadáver. Contava encontrá-la derrubada, como os policiais tinham feito para resgatar o corpo. Mas qual não foi minha surpresa ao vê-la inteiramente de pé! Mais uma vez duvidei dos meus sentidos. Afinal, não tinha mais nenhuma razão para confiar neles. Portanto, cuidei que fosse mais uma alucinação. Fechei os olhos, contava que ao abri-los me depararia com a parede ruída. Desta vez, porém, tudo permaneceu como estava. Avancei um passo. Meu intento mais urgente era o de tocá-la, para certificar-me de sua existência. No momento que senti seu contato frio e áspero na ponta dos meus dedos, lá de dentro, do fundo de suas entranhas, ribombou, como o barulho de mil sirenes, um grito, um berro, um uivo lancinante, como só poderia ser produzido por uma criatura do inferno. Num piscar de olhos, a parede se esboroou feito um castelo de areia, levantando uma espessa cortina de poeira, revelando aos poucos uma visão dantesca...

“Um cadáver de mulher, em adiantado estado de decomposição, sustinha-se de pé, como um boneco desarticulado. O sangue enegrecido, que escorrera abundante do ferimento, havia coagulado sobre o corpo do cadáver, aderindo a ele como uma segunda pele, escamosa e horripilante. E, sobre sua cabeça, à moda de um turbante, estava enrodilhado um monstruoso gato preto. Sua boca, como a goela do demônio, dilatava-se, rubra, sanguinolenta. O único olho chamejava com revérberos do inferno. Quando me viu, ergueu-se sobre as patas, ameaçador. Recuei instintivamente. Meus pés esbarraram em qualquer coisa que emitiu um sonido de metal ao ser arrastado no chão de pedra da adega. Desviei a atenção por um segundo do monstro para confirmar o meu palpite. Abaixei-me rapidamente, numa tentativa desesperada para apanhar o atiçador de brasas. Foi o que bastou para o demônio se lançar com as garras aguçadas sobre o meu peito. Engalfinhamo-nos numa luta mortal. Suas garras me dilaceravam, num frenesi demoníaco, enquanto suas presas procuravam abocanhar-me a garganta. Confesso, minhas esperanças de sair vivo daquele confronto maldito eram praticamente nulas. Pois não era um gato simplesmente, uma criatura de deus como conhecemos que buscava me estraçalhar até a morte, e sim uma das muitas manifestações do demônio. Estava assim na iminência de ser devorado vivo quando minha mão se fechou em torno do atiçador de brasas. Agarrei-o freneticamente e, reunindo todas as minhas forças, consegui cravá-lo profundamente no olho restante do monstro que, ferido mortalmente e soltando um grito pavoroso, abandonou-me na mesma hora, indo se ocultar num canto, atrás de um monte de entulhos. Eu, por meu turno, rastejei até a parede oposta. Respirava com extrema dificuldade, aos arrancos. O sangue porejava dos muitos ferimentos. Uma dor aguda, como se tivesse sido mergulhado em óleo fervente, arrancava-me lágrimas dos olhos. Mesmo assim, era preciso encontrar coragem para terminar o que havia começado. Ou seja, precisava certificar-me de que o demônio do gato estava mesmo morto. Levantei-me como pude e caminhei até o seu covil...”

– Perfeito. Agora o filme desvanece e cortamos de volta para a colina, onde Germano remata seu relato para o jovem.

R/G: – Mas, nem sinal dele. Decerto voltara para o lugar de onde veio. Cumprira sua tenebrosa sina, é tudo que posso imaginar. Aliás, como de resto, todos nós o fazemos. Quanto a mim, abandonei a Igreja e tudo o mais. Afinal, encontrara meu caminho. Duro caminho. Porém, como diz o evangelho, “Na casa do Senhor existem muitas moradas”. Contudo, diria de minha parte – sem evidentemente querer emendar palavras tão verdadeiras e tão sábias –, que há ainda muitos desvãos, muitos quartinhos escuros onde uma alma suficientemente ardente pode fazer brilhar com sua luz e, assim, levar conforto e entendimento àquelas coisas que não se revelam sob a claridade de uma luz muito intensa. (suspira) Bem, acho que é tudo.

– Germano se levanta com um sorriso radiante. Um lindo gato, completamente negro, corre ao seu encontro. Germano pega-o no colo.

R/G (para o gato): – Edgar, quero que conheça um amigo...

FIM

luis narval
Enviado por luis narval em 30/03/2012
Reeditado em 18/12/2012
Código do texto: T3585174
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