A Dama Negra
CHINON – 1790
O trote do cavalo atraiu o olhar da curandeira que assistia tudo pela janela de sua cabana. O homem, elegantemente vestido, atravessou a vila com altivez em direção ao Chateau Chinon.
A mulher apertou os olhos cansados enquanto buscava no velho baú as cartas do tarot. Empurrou os restos do parco jantar para um canto abrindo espaço para as cartas. A seqüência deixa seu coração apertado:
- O louco. Ele busca aventuras.
Tira uma nova carta e depara-se com a imperatriz:
- A Dama Negra, o encontro será certo.
Outra carta sai do monte:
- A torre, algo de terrível nascerá deste encontro.
Quase sem coragem retirou a última carta e com um grande estremecimento a colocou no final de todas.
- A morte.
***
Guillaume atravessou a “Ville” sem notar as pessoas a sua volta. Seu destino é certo: O Chateau Chinon, onde finalmente conhecerá a famosa Condessa. As histórias sobre a “Dama Negra” chegaram como sussurros assustados aos ouvidos do Rei, que enviou seu melhor vassalo para descobrir o que era verdade e o que eram “crendices” de camponeses.
A lua já começava a despontar no céu, quando finalmente ele chegou aos portões do castelo.
Foi conduzido até uma sala íntima, onde a lareira ardia, exalando o cheiro de madeira queimada. Observando aquela atmosfera, um arrepio atravessou seu corpo. Aquele já havia sido o lar de Delfim Carlos VII – Rei da França entre 1422 a 1461 e local onde fora visitado por Jeanne D´Arc “A Louca de Orleans” como era conhecida de forma jocosa pelos nobres da corte do Rei Luis XVI. Aquelas paredes guardavam segredos e traições. O maior deles, era o que cercava a morte do Conde Philippe Monvandelle.
****
Os sons noturnos invadiram a masmorra despertando Valerie de seu sono hipnótico.
Afastou as pesadas cortinas de veludo negro que protegiam seu leito, espreguiçando-se feito um felino.
Seus olhos ganharam um tom avermelhado quando percebeu a aproximação de alguém, voltando ao normal ao ver que se tratava de Marie, sua camareira.
- Entre, Marie
O coração acelerado e a respiração entrecortada da garota, denotam o terror por estar na presença da Condessa de Morvandelle..
- Boa noite, Madame. Trouxe seu vestido.
Valerie aspira o terror da serviçal e a fome queima seu estomago.
- Que aconteceu Marie? Porque estás tão nervosa hoje? – observando com sofreguidão sua jugular pulsante.
- Não há nada, madame. Sabeis que sou uma tola e não sei me portar diante de sua presença.
Valerie afastou-se sem perceber o brilho de ódio que transpassou os olhos de Marie. Ela não tinha tempo para tolices. Precisava se preparar para aquela noite. Sabia que ele estava chegando.
Despiu as vestes expondo o corpo perfeito aos olhos invejosos de Marie. A coloração doentia da pele era a única coisa que destoava da descrição de uma Deusa: longos cabelos negros que chegavam à metade das costas, cintura fina e delgada, pernas longas e torneadas, nádegas redondas e firmes, seios fartos que fariam qualquer homem desejar morrer só pelo prazer de tocá-los. A boca carnuda, trazia a promessa de um sorriso, os olhos eram duas esmeraldas que tiravam a respiração de quem os encarasse mas também eram capazes de cortar a carne como navalha, quando estavam enfurecidos.
Marie começou ajudá-la a vestir o pesado vestido vermelho. Ao encostar na pele fria um esgar de nojo perpassa seu rosto, mas ela tratou de disfarçar. A Condessa permaneceu indiferente à camareira, envolta nos seus pensamentos soturnos. Se fosse possível, seu coração estaria batendo no mesmo ritmo de seus pensamentos. Mas havia muito tempo que isto não acontecia, pois fora transformada numa criatura da noite, uma bebedora de sangue, uma vampira.
***
FLORESTA DE CHINON – 1779
Uma forte chuva ensopava as vestes da guarda do Conde de Monvandelle. Os cavalos, impacientes, ameaçavam todo o momento jogar seus cavaleiros ao chão. A noite sem luar tornara a floresta de Chinon assustadora, e todos ansiavam pela segurança dos muros do castelo.
Dentro da carruagem o casal fazia a viagem em total mutismo. Valerie estava entediada e com ódio de sua irmã. Havia descoberto que ela mantinha um caso secreto com seu marido. Seu ódio não era gerado pelo amor que supostamente deveria sentir pelo conde. Isto seria impossível, já que ele não passava de um velho bêbado e devasso, mas sim pelo fato de sua irmã achar que poderia tomar seu lugar. Envolta em seus pensamentos, assustou-se com os gritos dos soldados e o solavanco da carruagem que parou abruptamente.
Tentou enxergar através da janela e com horror viu um vulto imenso atacando um dos soldados, degolando-o na mesma hora. Os demais tentavam atingi-lo com suas espadas, mas parecia que sua carne era feita de ferro, pois nada o feria. Um a um, todos tombaram. Como por encanto, a chuva parou e a lua apareceu por detrás das nuvens, iluminando a clareira onde jaziam os corpos mutilados e o misterioso homem.
Procurou a segurança dos braços do Conde, mas, para sua surpresa, ele a havia abandonado a própria sorte, correndo através das árvores.
- Covarde! – gritou para o vazio com desespero na voz.
- Não se preocupe Madame, vós ainda o vereis.
A voz rouca e melodiosa fez seu sangue correr mais rápido. O mesmo homem, surgira em frente à porta escancarada da carruagem, deixando-a sem fala. Ele possuía um dos mais belos rostos que Valerie jamais viu. A pele excessivamente branca era emoldurada por sedosos cabelos loiros. O queixo forte possuía uma covinha que suavizava as linhas quadradas do rosto. A boca era carnuda e vinha acompanhada de um sopro entorpecente. Mas o que cativou Valerie foram os seus olhos. Profundos e azuis, com sua íris entremeada de traços acinzentados, remetiam ao mar, cuja placidez da superfície oculta os demônios que reinam em sua profundeza.
Valerie foi tomada pelo entorpecimento. Aqueles olhos a chamavam para uma aventura de prazeres e dor. Seu corpo inteiro ansiava pelas mãos daquele homem a ponto de sentir-se ruborizada. Um levantar de sobrancelhas mostrou que o ele sabia o que ela queria.
Tomou suas mãos e a conduziu para a noite. Por mais estranho que aquilo parecesse, sentiu como se estivesse voltando para casa. Os anos de tédio, rancor e noites solitárias ao lado do marido desapareceram de sua mente, enquanto o misterioso homem a aninhava em seu peito largo, sussurrando as maravilhas que a aguardavam estando ao seu lado.
- Tu sempre estarás segura ao meu lado. Busquei-te pela eternidade, te desejei e amei desde tempos remotos. Tu serás sempre o meu verdadeiro amor.
Ele a tomou em seus braços beijando seus lábios até sangrar. Um gemido escapou de sua garganta enquanto o homem erguia as várias saias, puxando sua anágua para tocar suas coxas.
Suas mãos geladas, subiram até o ponto entre suas pernas, enlouquecendo-a de prazer. O restante do vestido foi rasgado com fúria expondo seu corpo jovem ao desejo insano daquele homem.
Deitou-a na relva com reverência. Seus olhos prendiam o olhar de Valerie, prometendo prazeres inimagináveis.
Tomou seus seios entre os lábios, sugando os bicos intumescidos enquanto as pernas dela enroscavam-se nos quadris do estranho. Mãos nervosas procuravam afastar as roupas dele, que eram a única barreira entre seus corpos. Quando a pele fria encontrou a pele em brasa dela um estremecimento tomou sua alma. Ela sabia que estava perdida. Que daquele momento em diante iria onde ele quisesse, que sua alma e sua vida lhe pertenciam para sempre. Ele encaixou sua masculinidade entre as pernas da mulher, puxando sua orelha para bem perto de seus lábios:
- Minha doce Valerie, eu te ofereço o maior dos presentes e a maior das maldições. A vida eterna. Se tu quiseres me acompanhar nesta aventura, apenas diga sim.
- Sim, meu amor.
Ele a penetrou com fúria enquanto seus dentes afiados rasgavam a pele alva de seu pescoço. Um grito de prazer e dor acompanhou o movimento desenfreado dos quadris de Valerie, que sentia a cada estocada, sua vida esvaindo do corpo. No auge do prazer, ele rasgou o próprio pulso e fez com que ela bebesse do seu sangue maldito.
Uma dor insuportável correu por seu corpo. Tentava a todo custo respirar, mas seu pulmão estava fechado. Arregalou os olhos e encontrou o olhar do vampiro que agora eram duas brasas. Tentou gritar mas nenhum som saía de sua garganta. Antes de cair desacordada ouviu a voz do anjo demoníaco sussurrar:
- Minha doce esposa, nos encontraremos novamente.
Os vassalos do Conde de Monvandelle encontraram um cenário de terror na manhã seguinte. Corpos mutilados espalhavam-se em torno da carruagem vazia. Por todo o dia, procuraram o Conde e a Condessa, encontrando-o a alguns metros de distância totalmente transfigurado. A cabeça havia sido arrancada e empalada. A única sobrevivente foi encontrada em uma caverna, nua e ensangüentada.
Daquele dia em diante, os hábitos da Condessa tornaram-se estranhos. Não queria comer, trancava-se em seu quarto durante o dia, proibindo que qualquer pessoa se aproximasse, saindo somente quando a noite chegava.
Apesar de mais bela do que antes do misterioso ataque, trazia sempre uma aparência doentia, com sua pele quase translúcida.
O mais estranho foram os acontecimentos posteriores. Vassalos desapareciam misteriosamente, animais apareciam estraçalhados nos currais e estábulos. O terror tomou conta da pequena vila medieval onde as pessoas evitavam sair à noite.
***
Guillaume saiu de seu devaneio quando o perfume de lavanda atingiu suas narinas. Na porta, a mais divina de todas as mulheres o observava com um sorriso misterioso.
- Minha escusa, nobre senhor. Espero não tê-lo feito esperar demais.
Ele ficou emudecido perante a beleza daquela mulher. Sentiu que o ar fugia de seus pulmões e um estremecimento tomou sua alma.
- Senhora, para ser agraciado com tamanha beleza eu aguardaria a vida toda.
- Pois então pouparei o seu tempo.
As palavras misteriosas acenderam um alerta na mente entorpecida de Guillaume. Ele tinha uma missão e não podia deixar-se dominar pelo desejo.
- Condessa, o que me traz até vossa presença são relatos inquietantes que chegaram ao conhecimento de vossa majestade. Estes os relatos dão conta do sumiço de muito de seus vassalos e da insegurança que ronda este nobre vilarejo.
- Mas de onde vem tamanho absurdo, Monsieur? – apesar do tom descontraído, Guillaume assustou-se com a fagulha que atravessou o olhar da Condessa.
- Temo dizer que os relatos vieram de dentro de seu próprio castelo, Madame. – retirando do bolso um pedaço de papel que trazia o selo do Conde de Monvandelle.
Ao ler o que estava escrito, uma fúria cega apoderou-se de Valerie. Seguiu para a mesinha próxima a Chaise Loungue, procurando o pequeno sino de prata. Tocou-o freneticamente até que na porta surgiu a camareira Marie.
- Marie, acredito que já conheça Monsieur Guillaume Phillipe Vingnon. Monsieur Guillaume é com prazer que apresento Mademoiselle Marie Isabelle Pouillieute, minha irmã.
Atônito, o homem olhou para a camareira, a mesma que havia conduzido-o até aquela sala, e só então percebeu certa semelhança com a Condessa. Os cabelos também eram pretos, mas de longe carregava a beleza e sensualidade da irmã. Seus olhos eram apáticos e o corpo magro ficava escondido por baixo do vestido de tecido barato.
Marie, acuada em um canto, olhava a irmã com ódio e medo. Sua traição havia sido descoberta antes do tempo. Esperava a presença do vassalo com o sol alto, quando teria a chance de fugir da fúria de sua irmã e assistir de camarote a destruição daquele monstro. Seria a oportunidade tão esperada de finalmente tomar o seu lugar. Só não imaginava que o Rei enviaria um tolo sem escolta até o covil do demônio.
Sons de gritos e espadas sendo empunhadas, chegaram aos ouvidos apurados da vampira. Com cautela, aproximou-se da janela. Uma horda de aldeões carregando tochas e cruzes, travaram breve batalha com os guardas dos portões, e agora tomavam os jardins, forçando a porta de entrada.
- Peguem o demônio! Queimem a bruxa!
O ódio transformou a bela Condessa em um ser assustador. Os olhos dantes verdes, brilharam como dois rubis, e entre os lábios surgiram duas enormes presas.
Antes que Marie tivesse tempo de reagir, a vampira já estava ao seu lado, cravando os dentes em seu pescoço e sorvendo com voracidade o líquido viscoso.
O corpo inerte da irmã foi largado quando sentiu algo queimando seu peito.
Um grito de terror reverberou pelas paredes do castelo. De modo sorrateiro, Guillaume aproximara-se dela, enfiando uma adaga de prata em seu peito. A Vampira empurrou o homem, que caiu com o pescoço quebrado.
A dor espalhou-se tornando seus passos mais lentos. Neste momento, a porta foi escancarada e os aldeões adentraram a sala, à caça da Condessa.
- Ela está aqui!
***
Ao saberem da chegada do vassalo do rei, os líderes da pequena vila tomaram coragem para invadir o castelo. Após comungarem com o pároco da igreja local, muniram-se de tochas, foices, cruzes e muita determinação, seguindo para os portões onde os poucos guardas que restaram, não tiveram a menor chance. Um fervor alucinado os conduziu à porta de entrada, que foi forçada até que finalmente adentraram no covil do demônio.
O medo fazia seus corpos transpirarem e a coragem ameaçava deixá-los. O ambiente recendia a morte. Um vento gelado atravessou seus corpos, com mãos frias e vozes demoníacas. A coragem começou a abandonar seus corações, mas já era tarde demais para recuar. Precisavam encontrar a Condessa e acabar com a maldição que havia tomado aquelas paragens. O grito horrendo atingiu seus ouvidos e num último ímpeto, correram em direção do som.
O vulto atingiu-os antes que tivessem tempo de reagir. Corpos amontoaram-se na entrada do castelo. Gritos de dor e desespero enchiam de prazer os ouvidos do homem. Um banquete de dor e sangue matou sua fome.
Os aldeões corriam em desespero derrubando suas tochas e deixando para trás seu símbolo de fé, tão inútil diante de tamanho poder. Em pouco tempo o fogo lambeu as cortinas subindo pelas paredes.
Antes que o fogo tomasse completamente o ambiente, o ser demoníaco refugiou-se no lugar onde sua amada jazia ferida. Tocou seu rosto frio e com todo amor a ergueu em seus braços. A fumaça começou a penetrar na sala, trazendo o fogo que teria o poder de exterminá-los. Com leveza, saltou do alto da torre, e seus pés quase não fazem barulho ao tocar o solo. Com o castelo já completamente em chamas, segue rumo à floresta, tendo como testemunha a lua, sua algoz, que os observava com a indiferença de uma Deusa Frígida.
***
Os anos passaram em Chinon. Daquela noite, restaram apenas as cinzas do castelo. Os poucos que sobreviveram, afirmaram que a Condessa morrera queimada, juntamente com o vassalo do rei.
Não houve tempo para represálias por parte de Luis XVI. Pouco tempo depois estourou a revolução francesa, que o levou, juntamente com Marie Antoinette, à Guilhotina.
Os sons de “Vive la Révolution” tomaram as ruas do povoado. Todos acreditavam que era o fim da maldição e da miséria para o povo.
A velha curandeira já não tinha forças para sair de seu leito. Ela sabia que seu tempo estava acabando. Ouvia a alegria dos jovens e seu coração apertou-se. Com as mãos fracas pela idade, puxou pela última vez as cartas do tarot.
- Estão todos condenados. – Sibilou, fechando os olhos pela última vez.
A carta da Imperatriz jazia no solo, trazendo a promessa de noites amaldiçoadas.