31 de outubro
Nem é tão ruim assim, sabe. A escuridão e tal. Eu até gosto. O silencio dos túmulos, a brisa fria da madrugada... Se há dois anos tivessem me perguntado o que eu pensava sobre esses góticos e andarilhos da noite, diria que isso tudo não passava de frescura de adolescentes revoltados. Mas há dois anos, eu era uma pessoa. Hoje sou outra, completamente diferente. Antes, adorava ter uns minutinhos de sol batendo na minha pele. Hoje, prefiro o silêncio dos mortos à luz da Lua.
Meu lugar de descanso favorito passou a ser o cemitério da Consolação. Ironicamente, ele é um tipo de consolo para mim. Passei a gostar muito de artes tumulares. Sinto-me bem no meio dessas coisas.
Vejo tudo mais claramente, meus sentimentos são mais intensos agora. Tornei-me mais pensativa também. A selvageria das pessoas, por exemplo, me intriga e me faz pensar muito. E me faz ter nojo do que o ser humano é capaz de fazer por coisas triviais. Gastam suas almas com luxuria, destruindo muitas vezes o que para alguns foi o bem mais precioso que poderiam ter: a família.
É incrível como alguns sucumbem tão rápido, se entregando às drogas, a uma vida desregrada e sem salvação.
Direi como era a minha vida antes. E como me transformei no que sou hoje.
Trabalhava com desenhos. Era estilista. Meu trabalho era bom, embora pouca gente o conhecesse. Meu expediente ia das 18h00 até as 04h00 da manhã.
Adorava o que fazia. Sempre gostei de desenhar. Trabalhava comigo um cara de uns 22 anos, que nunca falava. Ficávamos sozinhos sempre. Éramos os únicos daquele horário. Acho que o nome dele era Alan. Sim, era esse o nome dele. Ninguém sabia de onde ele vinha ou quantos anos realmente tinha. De olhos verdes, sempre tristes, emanava algo como sabedoria de séculos e sofrimento. Ele parecia estar sempre doente. Estava sempre pálido, com olheiras, que podiam ser vistas de longe. Vestia-se de preto sempre. Roupas pretas davam a ele um ar de seriedade, alguma coisa assim. Às vezes, ele me pegava olhando pra ele. Eu baixava a cabeça, envergonhada, e via que ele sorria. E todos os dias isso se repetia, sem que trocássemos uma só palavra. Nunca nos falamos. Até aquele dia. Lembro-me bem. Era 31 de outubro. Dia das bruxas, e saímos mais cedo, às 02:00 da manhã.
Naquela noite, faltou luz nas ruas ali perto. Como era Lua cheia, as ruas estavam algo iluminadas. Eu passava por uma ruazinha, e desci uma escadaria longa e mais escura que as ruas. Já estava no meio dela, quando alguém me chamou. Virei-me, e dei de cara com Alan, parado ali, me olhando como se eu fosse algo de comer. Meus sentidos me alertaram para sair dali, mas eu me sentia incapaz de correr diante daquele olhar verde e sofrido. Ele olhava algo abaixo da minha orelha direita.
-Não é seguro você andar sozinha por esse escadão, ainda mais no escuro.
Meu Deus, a voz dele era linda! Suave, sedutora e agressiva ao mesmo tempo.
-Que nada, Alan. Eu passo por aqui sempre. - todos os meus vinte anos pesavam nas minhas pernas naquele momento.
Ele me olhou, abriu a boca para dizer algo, mas não disse nada. Apenas se ofereceu para me acompanhar.
Em alguma parte do caminho, não me lembro exatamente onde, ele segurou meu braço e me fez olhar para ele.
-Eu vejo você me olhando todos os dias, Júlia. Confesso que gosto disso-ele disse, dando um leve sorriso.
Ele se aproximou, e arrancou meu crucifixo, um que minha mãe tinha me dado quando eu ainda era um bebê.
Alan tirou a minha jaqueta e a jogou no chão, junto com o crucifixo. Beijou-me de leve e foi descendo até o meu pescoço.
Não me lembro se foi naquele momento que desmaiei, ou se foi mais tarde. Mas me lembro muito bem da dor.
Um parto teria sido menos doloroso do que aquela mordida. E junto da dor, havia uma pontada de prazer. Eu sentia os caninos longos dele dentro de mim. Isso pareceu durar uma eternidade.
Quando ele me soltou, caí no chão e lá fiquei por uns minutos. Ele me levou, mais tarde, para o cemitério da Consolação e me deixou dentro de um tumulo que tinha aberto para mim. Achei que ele esperasse que eu estivesse morta.
Eu o vejo, às vezes. Sempre fazendo novas vítimas. Agora, por exemplo, vejo-o lá longe, olhando para mim com aqueles olhos verdes que eu tanto gosto. À luz da Lua, ele fica ainda mais bonito. Ainda há sangue em seu rosto. Mas eu não me importo.
Seu beijo é frio, assim como o meu. Mas quem disse que eu não gosto? Eu amo. Eu O amo. E, como percebo, ele sente o mesmo.
Sei que sou nova nessa vida, ou morte, não sei. Só sei que me sinto mais viva do que nunca. E já sei dos privilégios que tenho por ser uma sugadora de sangue.
Por ser uma vampira.