O circo mágico (1) - Casa dos espelhos

— Pode entrar, meu anjo.

Liz lançou com seu único olho um olhar vazio e conformado para seu interlocutor. O homem era estranho o bastante para não perceber a estranheza onipresente naquela criança deformada. Ele, a criatura sombria na entrada da morada dos espelhos, lembrava um desses artistas famosos, todo estilizado. Adulto, mas não um adulto velho, provavelmente não chegava a ter quarenta anos. Tinha a pele morena, o cabelo longo, crespo e os olhos igualmente escuros. Lembrava um pirata, especialmente por causa da cicatriz enorme que ele carregava em seu rosto quase belo, só um pouco frágil.

Suas vestes também remetiam a uma estranha fantasia. Era um conjunto antiguado, um dia talvez teria adornado o corpo de um nobre. Naquele momento, porém, não parecia nada além de uma roupa para excêntricos. Um paletó marrom escuro, alguns babados sóbrios e negros caindo pelas mangas, e mocassins visivelmente caros. Ah sim, e havia a cartola também preta, o detalhe que marcava seu esteriótipo de lunático.

Liz, por sua vez, não queria aparentar uma mendiga, era realmente uma. A pele também morena tinha um odor desagradável graças a falta de banho, e o longo cabelo castanho vivia embaraçado e sujo. Não tinha nada de pessoal na forma como se vestia, era apenas uma dessas indesejadas pelo mundo, acolhia o frio que de fato sentia em um suéter velho que omitia a pouca puberdade aflorada em seu corpo.

Tinha treze anos, e escondia em seu conjunto sofrido a beleza fascinante que despertara aquela amabilidade no homem da entrada. Mas era muito magra, e um acidente no passado lhe tomara seu olho esquerdo. O que sobrava era de um verde esmeralda muito bonito, uma joia escondida em uma caixa decadente.

Sua chegada ali deu-se por força do acaso. Andava a alguns meses com um grupo de garotos de rua e, no momento em que fugia de um roubo mal sucedido deparou-se com uma porção de tendas listradas em vermelho e branco. Uma espécie de feira, constatou. E o lugar parecia tencionar, realmente, acolher crianças, mas uma série de distorções tornava-o pouco atraente.

Primeiramente, era gerenciado por uma gente estranha. Segundo, as luzes coloridas iluminavam pouco, davam ao lugar uma atmosfera misteriosa demais para ser acolhedora e juvenil. A comida que vendiam tinha um aspecto saboroso, mas imitavam coisas sombrias, e os brinquedos e as tendas pareciam todos levar para um mundo de pesadelos.

Ali adentrou, em sua fuga, mas ao ver que não era mais seguida acabou vagando pelas tendas, curiosa com a mágica soturna emanada pelo lugar. Havia palhaços, malabaristas, ciganos fazendo leitura de mão, mas todos esses personagens típicos de um parque de diversões itinerante pareciam estranhamente melancólicos ou estranhamente assustadores. Evitava esbarrar com seu único olho no olho de um desses, o encarar mútuo muitas vezes acabava sendo hostil.

E por fim, Liz esbarrou na casa de espelhos. Não pretendia, na verdade, entrar ali, apenas passava perto quando viu o homem sair da tenda acompanhado de um casal comum que, aparentemente, via com muita naturalidade aquele circo.

Liz o fitou com alguma estranheza, sem perceber tentava intimidá-lo com sua deformação, mas ele parecia inabalável. Hesitou por um momento, procurou pela placa com o preço, mas não encontrou nada. Ele lançava um olhar curioso, receptivo, mas seu sorriso guardava uma malícia estranha, desconfortável. Ela engoliu o seco:

— Não tenho dinheiro.

Ele estendeu sua mão:

— Não disse que você precisaria de pagar.

Foi pega de surpresa, não estava acostumada a rejeitar favores. Antes que pensasse em como se dizia não, o homem já colocava as mãos em seus ombros magros e a conduzia para o interior da tenda. Lá dentro, a iluminação se dava exclusivamente por velhos candelabros. A luz era fraca, mas o pouco que via lhe dava a impressão de que o interior do lugar era mais amplo que o exterior.

Provavelmente era culpa dos espelhos, eles se amontoavam aos montes formando corredores confusos, a conjuntura dava quase que em um labirinto. Liz pensou realmente ser possível se perder por lá, e hesitou em dar mais um passo.

Com uma gentiliza que ela nunca antes havia presenciado, o homem disse que seria seu guia, e ainda levando-a pelo ombro em um meio abraço sutil, ele se pôs a conduzi-la por um corredor de espelhos. Via um sorriso discreto sempre guardado em seus lábios, mas seus olhos acabaram incógnitos pela sombra da cartola.

— Na verdade, acho espelhos um tanto quanto sem graças...

Ela comentou, expondo sua opinião como nunca antes havia se exposto a alguém, e sem perceber que acabava de cometer uma indelicadeza.

— Creio que a senhorita não conheça os bons espelhos — Ele disse — Ainda assim, não posso deixar de estranhar você, se não gosta de espelhos certamente é porque não gosta de contemplar-se.

Ela fitou o primeiro espelho. As distorções fizeram dela uma garota gorda e baixa. Vivia na rua, esse tipo de truque jamais havia lhe sido apresentada, mas mesmo assim não guardavam nada de realmente incrível.

— É isso que você acha? Moço, eu não vejo nada de muito impressionante nesses seus espelhos.

Ele abafou um riso.

— Se você estiver interessada, mostro para você espelhos que nunca mostrei para visitantes comuns.

— Olha, eu não posso pagar...

— Roubei de uma velha fábula infantil, por exemplo, um espelho capaz de mostrar os verdadeiros sonhos de uma pessoa — Ele disse, ignorando a advertência. — Quer ver algo assim?

— Escuta, essas coisas, não tente me enganar, eu sei bem o que não existe.

Ele abafou novamente uma risada, era um homem de gestos contidos, mas expressivos. Ela podia, sem ver, sentir os olhos dele brilharem através das sombras daquela cartola sombria.

— As crianças de hoje são realmente encantadoras...

E dizendo isso seguiu pelo corredor. Ela permaneceu imóvel até vê-lo olhar por cima dos ombros, checando se ela o seguia. Ainda hesitante devido àquela última fala, Liz obedeceu. Quando deu por si, havia ido longe o bastante para não conseguir retornar por aquele labirinto. Tentou não mostrar medo, mas a segurança que ela tinha de poder correr agora conduzia para um perigo ainda maior. Não era uma ilusão de óptica, o lugar era realmente enorme o bastante para alguém se perder lá dentro.

De repente ela percebeu um par de passos seguindo na direção por onde ia. Uma dupla surgiu no caminho, dois homens belamente vestidos. Um deles, estava mais atrás, era discreto. Tinha um longo e sedoso cabelo negro, a pele pálida e trajava um robe escuro adornado com fios dourados. O outro vestia um terno vitoriano, tinha um chapéu e uma bengala. Era jovem e indiscutivelmente belo, o guia de Liz não pareceu contente ao vê-lo:

— Não me lembro de permitir sua entrada, Decarabia...

— E desde quando o senhor, Chemoth, tem poder para me barrar?

Chemoth, como agora ela sabia que seu guia se chamava , entregou-se a uma resignação silenciosa. Decarabia fez menção de se retirar, mas seu acompanhante parou para contemplar Liz. Ela reparou que os olhos dele eram avermelhados.

— Quem é a garota? — Perguntou em um tom baixo, mas bem audível.

— Uma visitante — Chemoth respondeu.

— Ela me parece tão...

— Tão, o que, Auriam? — Decarabia perguntou com hostilidade.

— Viva.

Decarabia encarou Liz por um instante. A essa altura ela já havia sido intimidada o bastante, e recuava para trás de Chemoth, longe da vista dos dois.

— Hm... Parece que a sorte ainda sorri para você, Chemoth.

Decarabia disse, agora de fato andando para fora do labirinto. Auriam assentiu com suavidade e o seguiu. Eles estavam sozinhos de novo.

— O que foi isso?

— Ignore esses demônios cruéis, menina. E se os ver de novo, recue, não gostei da forma como O Insano olhou para você.

Liz assentiu. Quis dizer que achou a forma dele e de Auriam olhar bem semelhantes, mas se reteve. O estranho Chemoth agora estava mais falante, comentava sobre a variedade de espelhos que ele possuía. Liz achou um exagero, mas ele afirmou colecionar espelhos desde muito antes deles serem inventados.

E seu acervo, completou, incluía relíquias raras. Alguns de seus espelhos aprisionavam criaturas poderosíssimas, outros eram portais para mundos ditantes, muito além da vida e da morte. Criaturas de todo o tipo usavam sua tenda para se locomoverem de uma dimensão a outra, ele faturava muito com isso.

Mas havia ainda os que se aproveitavam de uma condição privilegiada para usar da sua tenda sem pagarem nada.

— É porque um dos meus espelhos leva direto ao inferno. Me arrependo de ter adquerido ele, pretendo me livrar daquela velharia o mais rápido possível...

Naquela altura Liz deu-se conta de que Chemoth não lhe contava aquelas coisas visando ser compreendido. Já não conseguia desacreditar nas palavras dele, porém. De alguma forma ela sentia que estava longe demais da velha cidade que havia tomado como sua casa e não mais pretendia atormentar seu guia com as coisas que acreditava saber.

— Escuta, depois você vai me levar para a casa, né? — Ela pediu, interrompendo-o em uma divagação.

Chemoth virou-se com estranheza:

— Nenhuma viva alma que tenha uma vem parar aqui. Você tem um lugar para onde voltar?

Ela hesitou.

— Não exatamente.

Ele pareceu aliviado.

— Muito bom.

E subitamente puxou uma cortina de veludo vinho que escondia um espelho:

— Aqui, veja se gosta desse.

Liz obedeceu, mas viu apenas seu reflexo, não havia nada ali,

— O que você vê?

— Nada — Ela disse simplesmente, mas viu ele se sobressaltara perante aquela fala e se corrigiu— Me vejo, vejo essa sala, tudo normal.

— Isso não é nada, querida... — Ele retrucou, profundamente magoado — Esse espelho mostra quem o olha do jeito que ele realmente é.

Ela não compreendeu. Ele sorriu e prostrou-se ao lado dela, permitindo-se contemplar o próprio reflexo. Liz agora havia ficado assustada, o homem ao seu lado não parecia-se realmente ele, era uma sombra disforme e sombria. Um fantasma feito de trevas, era assustador.

— Aqui, me siga — Ele ordenou, ignorando sua surpresa. — Veja esse.

Ela virou-se na direção que ele havia comandado. A surpresa foi atroz, seu reflexo mostrava uma garota limpa, vestida com roupas normais e em pose dos dois olhos.

— O que você vê?

— Meu outro olho...

— Só isso?

— Estou limpa... E você não aparece.

Ele suspirou:

— Seu sonho é tão solitário!

Ela virou para encará-lo:

— E você, o que vê?

Ele sorriu:

— Sou um homem de desejos levianos, mas muito fortes. No momento me vejo em pé, segurando a senhorita no colo, como se fosse minha filha.

— Heim?

— Mas não se preocupe, não deixarei que meus desejos lhe façam mau algum. Eu gosto de você o suficiente para mantê-los sobre controle. Quer ver mais espelhos?

— Acho que esse espelho já me basta...

Ele sorriu.

— Você quer?

— O que? Mas ele está a venda?

— Se você entrar no espelho, poderá viver seu sonho. Não recomendo, nunca vi ninguém conseguir voltar, e por isso mesmo me recuso a entrar. A tentação pode ser grande, é verdade, por isso mesmo tento ser volúvel tanto quanto possível, não crio para mim nenhum sonho grandioso, assim não sou tentado. — Ele explicou — Mas não, meu espelho não está a venda. Seu sonho, sim.

Ela contemplou a imagem do estranho, assombrada, então virou-se para o próprio reflexo e caminhou na direção do seu sonho. Ele pousou a mão morena em seu ombro.

— Mas mesmo assim há um preço... — Ele disse — Quão longe você iria pelo seu olho?

— O que você quer?

— Eu posso pedir sua alma, para mim ela de nada serve, mas posso usá-la de moeda em outras transações... — Ele refletiu, pensativo — Mas tenho uma ideia melhor, se o problema é só o olho que você não tem, eu posso arrumar um novo para você, não precisa de entrar no espelho.

— Em troca de que?

— Um sonho, por outro, menina. Você vive aqui comigo, me faz companhia. Então você se torna minha filha. Eu te visto, te dou um olho novo, te permito criar sonhos muito mais grandiosos que esse seu de agora...

Liz olhou novamente para o reflexo. De fato, da forma como ele colocava, parecia um sonho tolo. Não entendia as motivações daquele ser estranho, mas achava ceder sua alma (mesmo não entendendo que mau isso lhe faria) muito mais grave do que aceitar uma paternidade forjada. Parecia até uma boa ideia, se tornar filha de alguém. Quando deu por si a imagem de Chemoth integrou o sonho impresso no espelho. Ele pousava sua mão no ombro dela, um gesto paterno. Decidida, virou-se para ele:

— Acho que sim, temos um acordo.

Ele sorriu novamente e estendeu sua mão para selar o pacto com um aperto final. Atrevendo-se a sorrir também, ela apertou sua mão, sem entender realmente o que havia acabado de fazer.

Continua...

Auriam
Enviado por Auriam em 27/10/2011
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