O Sussurro da Meia Noite
Certa vez encontrava-me eu na pequena cidade de Dinkstown. Um lugar distinto, provido de extraordinária amenidade e tranquilo demais; um povoado arisco e desconfiado, o qual, ao achegar-me mais próximo de suas velhas e pestilentas construções, escondiam-se além de burlescas janelas envelhecidas no decorrer de muitas décadas. Contudo, de ouvidos atentos aos relatos de meu estalajadeiro, certifiquei-me de que a cidadela escondia horrores jamais imaginados por nenhum outro espectro humano em nenhum outro lugar. O estalajadeiro discorreu-me, durante o jantar, acerca de histórias que possuíam como principal personagem um menino e seu inefável desaparecimento, levando consigo a lúgubre e terrível obra do mais puro mal. Eventos marcantes pelo medo impregnado de forma devastadora sobre as cabeças daquele povoado, onde o céu, limite dos delírios da humanidade, perdido nas trevas da escuridão de todas as noites, tomava formas de ceifadores vindos dos covis mais obscuros de um inferno atemporal.
O garoto, por sua vez – pobre alma possuída por mil demônios – deleitara-se ao aceitar e praticar tais horrores tão tenebrosos; ocasionados pelo medo – o mais profundo e covarde sentimento –, por si só.
De nome Vincent Burke, cuja pronúncia fora proibida ao longo das décadas, aquele menino levava a vida como outro qualquer: corria, brincava, saltava, bebia e dormia. Dormia... e numa dessas noites esquecidas na penumbra, recebera a visita tamanha indesejada. O vento assoprava incessante lá fora, e uma chuva iminente preparava-se para cair. As janelas rangiam como demônios perturbados no abismo eterno de fogo, e as portas, de uma madeira velha, conservada pelo tempo, gemiam assemelhando-se às almas trazidas ao tormento do tinhoso. Um frio de arrepiar até a última espinha da medula, gélido vento regresso das voragens desconhecidas das estrelas fazia-se presente quando, ao sussurrar dos galhos de árvores retorcidas e entresilhadas, formava-se nas nuvens uma sombra de extrema negridão, tomando o contorno de uma quase humana silhueta, trajada em vestes escuras e capuz sobre aquilo que chamavam de cabeça.
Ah! Quisera bem que fosse realmente humano! Mas de longe aquela alma errante, envolta numa capa longa, deteriorada pelas traças gigantes do Tártaro – onde, escondidos atrás de seus imensos portões de ferrugem, habitam os seres de distinta inverossimilhança; tais criaturas que ofuscam, confundem e dominam, em sentenças de violenta inquietação, o sono dos que, inocentemente, descansam ao silêncio da noite –, pudesse ser convocada em chamados naturais; de longe tal aparição fora comparada aos homens sóbrios da Terra.
Com o toque diabólico de angustiante fantasia, exalam o negror mórbido, fúnebre e macambúzio de suas vestimentas; discorrem o tenebroso sopro dos ventos conhecedores da Tormenta; sussurram a aspereza e austeridade dos segredos submersos em mundos jamais habitados, o qual os prisioneiros de notável condenação almejam inutilmente as primaveras e suas cores alegres, mas permanecerão na eternidade cinzenta às sombras das velhas e esquecidas construções. Engano daqueles cujo ceticismo procura desprover-lhes da crença de visões sobrenaturais e sediciosas.
A sombra, já tomada de tão intensa figura, deslizava melancolicamente sobre o gramado daquela casa sombria, onde a modernidade arquitetônica de épocas longínquas se fazia ausente. Flutuava deixando para trás um rastro de fumaça com cheiro de enxofre, como os antigos navios baleeiros ao cortarem os mares demarcando as águas com seus cascos descomunais. E a sombra, o Ceifador lançado sobre a Terra ao descuido de ladrões de maçãs, beirava a janela que se achava a alma jovial do menino Vincent, descansando em seus sonhos ingênuos. Como grandes olhos petulantes, expressões de extremo horror às faces de um homem achegado às raias da loucura, as folhas do umbral dividiram-se ao vento soturno, e a coisa adentrou tomando o quarto por aquele débil fedor; resvalou-se de encontro ao garoto, dispondo sobre o seu crânio dedos magros, decompostos quanto a um cadáver esquecido pelos anos.
Alisou-o repleno, talvez, por indizível sentimento o qual me impossibilito a descrever; em seguida, retirando as macérrimas mãos, na tenebrosa escuridão imperada por um silêncio perturbador, causador de desvarios sobre-humanos, pôs-se a ciciar aos pés do ouvido do menino muitas palavras desconhecidas; uma linguagem distinguida apenas pelos mais caliginosos espíritos. Findo. A maldade estava feita, e o Ceifador, obtendo almejado sucesso esvaeceu-se no uivo dos ventos, levando consigo a noite tempestuosa e suas bestas destinadas ao suplício dos condenados às penas eternas: os tormentos do precipício infernal.
No preâmbulo daquele dia foi que o povoado de Dinkstown conheceu a fúria dos demônios. O padeiro, um homem alto e trôpego, como fazia todas as manhãs, separara os pães mais tostados, solicitados pela Sra. Burke. Deteve o veículo em frente ao casebre, erguido bem ao fundo, percorrendo antes um caminho de terra encapelado por incontáveis ribanceiras, onde árvores colossais cresciam às bordas, entrelaçando-se no alto seus velhos galhos secos, ainda úmidos pela chuva passada. No chão era visível o amontoado de folhas vetustas e já pisoteadas pelos cães, estes que se aproximavam submissos de encontro a Jeremy, o padeiro.
O homem gritou por três vezes, em alto e bom som, o nome da Sra. Burke; em vão. Entretanto, alcançou como resposta os estéreis gemidos de almas perturbadas. Jeremy fora alastrado por um medo demasiado, e uma corrente fria percorreu-lhe o corpo. Disse mais tarde, quando voltara ao seu estado abstêmio; quando os horrores do mal haviam deixado sequelas perenes nas suas lembranças, que tais lamúrias infelizmente presenciadas por teus olhos humanos, assimilavam-se ao choro de incontáveis crianças em condição de extremo transtorno; o Diabo, o próprio, havia-lhe causado os mais terríveis temores; a encarnação obscura de toda divindade errante sucumbira-se às igualmente temíveis truculências, impelidas, quem sabe, por motivações obscuras. Livrai-nos, Deus, das garras de Satanás! Onde, naquele lampejo maldito, foram encontrados os corpos de duas pessoas, quase irreconhecíveis, dilacerados por cutelos sobrenaturais; mutilados ao som de foices gesticuladas pelo mal; gritante, perturbador, dispendioso! O Medo e o Terrível incutidos em obras de tamanha crueldade; lá estavam, frios... frios e mortos: o senhor e a sra. Burke.
Muito se falou no decorrer dos anos e espantoso o modo como fora tratado, nos dias vezes e vezes já passados, aquele caso. As pessoas discorriam e ponderavam sobre tal mistério até hoje insolucionado; todos inquiriam: a mente de uma criança confundida ou ordenada pelos sussurros de espíritos antigos? Nunca se soube ao certo, todavia, nesses dias que se fazem presentes, e os anos abeiram vinte, logo transcorridos, o fato, o real e a certeza permanecem um só: jamais, qualquer alma humana em sua mais afável disposição, deve limitar-se com as cercas que fecham a propriedade, pois, quando a plácida face da lua sobrepõe aos raios do sol, e as estrelas piscam ao longe como sarcásticos olhos a nos observar, ouve-se os gritos e gargalhadas de um jovem Vincent.