O Jogo
O Jogo
Tudo o que se segue ao nascimento é morte. Morre a inocência. Morre a decência. Morre a ignorância – esta morre aos poucos, e nunca por completo. Morre a distinção entre o bem e o mal. Morre a sanidade. Morre o corpo.
Ainda assim, surpreendemo-nos todas as vezes que encaramos a morte, seja nossa, seja vossa. É que a morte, apesar de nos ser por demais íntima, sempre deixa marcas indeléveis e nós não gostamos da indelebilidade, inclusive quando nós mesmos a procuramos. Esse assunto, a fissura e repulsa pelo indelével, pode ficar para depois. A morte, não.
Podes estar a perguntar-se: e onde nasce a inocência, ou a decência? Pois, se morre, nasce.
Raciocínio correto. Conclusão errada. Nós nascemos: somos gerados, gestados, saímos do ventre, recebemos a luz. Para muitos a vida se inicia “oficialmente” a partir daqui – sobretudo para aqueles que necessitam crer nessa concepção para conseguirem dormir depois de tantos homicídios. Após o nascimento, tudo se adquire – o conhecimento, a moral, a ética – mas não nasce. O conhecimento não nasce com você, não nasce de você. Floresce. É obtido através do convívio. Da mesma maneira nos referimos à moral, à ética.
Florescer é consequência. Nascer é dádiva.
A dádiva não nos toca duas vezes com o mesmo propósito. Não nascemos duas vezes. Não temos duas vidas, ou mais. A vida é uma só. Dividimo-la em etapas, fases. Se algo nos faz redescobrir a vida, não nos faz renascer. Não apaga a vida que tivemos, a vida que fizemos. Nos dá uma chance de rever aquilo que foi feito. Mudar, talvez. Aprender com as nossas mortes, as mortes de nossos conhecidos.
Olhar a morte nos olhos é uma dádiva: não ocorre duas vezes. Não se passa incólume ao seu toque.
E para onde vai toda esta reflexão afinal?
Não vai. Acompanha. Acompanha a mim, acompanha a ti. No fundo, conhecemos profundamente o significado de cada frase aqui escrita. Então “isto” não passa de uma maneira minha de “abrir o jogo”. Às vezes é necessário que alguém o faça e, subitamente, tudo, ou muito, passa a ter sentido. Vamos lá: jogo aberto, cartas à mesa. E agora é sua vez. A carta que tu pões na mesa tem que vir da tua mão. Aqui não se aceita blefe ou truque. Se não a tens, não a tencionas usar. Este jogo só funciona se houver honestidade.
Aguardo enquanto mordes o lábio inferior... Percebo tua indecisão. Isso mesmo: reflete!
Depois de muita escolha, aí vem: “matei meu pai”. Fria e dura pedra de gelo, a frase escorrega dos teus lábios, cai à mesa num baque seco. Olhando atentamente, percebemos a névoa que dela se exala: é realmente muito fria. O caminho percorrido por ela está molhado e escorregadio, uma pisadela em falso e caímos, tu e eu.
Encaro-te com fervor e tu percebes o ledo engano: não se joga um Ás sem naipe. “Matei-o com um tiro. Ele era alcoólatra. Batia em minha mãe todas as noites que chegava alcoolizado. Batia em mim e em meus irmãos. Minha mãe nos assistia à surra: impotente, mãos à boca ou onde quer que mais doesse. Éramos três ao todo. Dois meninos e uma mãe. Todos cercados pelo horror da bebida e seu efeito em nosso pai. Aos dezesseis, vendi a bicicleta, a televisão, minha honra a um senhor de 57 anos, que passeava à beira-mar. Comprei um revolver. Lambi-o e seu gosto era de um doce metalizado que me arrepiava os cabelos da nuca. Dois dias depois, meu pai chegou bêbado em casa. Foi direto para a cama. Minha mãe lavava-se ao banheiro. Ele, exausto do sexo e do álcool, caíra em sono profundo. Beijei-o a testa. Apoiei o revolver sobre o peito esquerdo, com firmeza. O disparo que deveria ser surdo teve um eco estrondoso. Ele era oco. Minha mãe saiu desesperada do banheiro. Olhou-me fixamente aos olhos. – Não me mate! – Nunca. – Deixe-me matar a si! A arma jazia sobre o pai. A mãe fechou a porta do quarto e foi embora.”
O Ás de Espadas vertia sangue. Mas não te eras suficiente.
“O que se seguiu às mortes foi o meu florescimento. O psicólogo dissera-me entender os pesadelos tidos desde então: são frutos da tua mente psicologicamente perturbada, dizia ele. Não o eram. São lembranças indeléveis do meu encontro. Não me arrependo, pois não há nada para me arrepender. Caiu por terra a diferenciação entre bem e mal”.
Continue.
“Sei que não sou um criminoso. Também não sou o senhor da justiça. Não sentencio. O que ocorreu foi destino. Floresceu a partir daquilo que meu pai me fez viver. É uma consequência que, apesar de parecer desastrosa, não o foi. Antes de morrer, meu pai olhou-me nos olhos. No nosso beijo de despedida, assentiu com o coração. Sabia que não poderia viver de outra maneira, senão nos torturando, nos massacrando. Recebeu a morte pelas mãos do filho como recebesse a vida das mãos do Criador. Antes de morrer, seus olhos tremeram um elogio, a boca titubeou um obrigado, a respiração afagou um incentivo, o coração parou solenemente. Ele era a recepção da morte consternada.”
Esse Ás de Copas pulsava vivo em tua mão ao colocá-lo sobre a mesa. E, ainda insatisfeito, arremataste:
“Mamãe saiu do banheiro às pressas com os olhos tremeluzentes: parecia que acabara de nascer. Mera ilusão. Me ensinaste que não há renascimento. Quando me pediu que não a matasse, não foi com desespero ou medo. Sentenciou. Saí do quarto. Por mais que pudesse ver a cena que se passaria ali, não quis. Não que a temesse, mas invadiria a glória que era exclusiva de minha mãe. Apesar de não ter presenciado, sei como tudo aconteceu. Mamãe fechou os olhos de meu pai, sua mão era firme. Apanhou a arma do seu peito. Passou a mão esquerda na mecha que cobria-lhe a face, pondo-a atrás da orelha. Apoiou o revólver ao ouvido, e, lateralmente deitada sobre o pai, o rosto a receber-lhe um beijo na face, disparou. Dessa vez um estampido surdo, abafado. A bala cruzou por entre os olhos do pai e eles se uniram pelo sangue e pelo amor numa segunda tentativa que talvez também não dará certo.”
Agora o Ás de Ouros tremeluzia sob a pouca luz do ambiente, sobre a mesa de toalha vermelha com bordados verde-escuros naquela noite fria de dezembro.
Jogo fechado.
Caso encerrado.
Hylo Leal, dezembro de 2009.