A chuva
Meu irmão Michael gostava de ver a chuva caindo, especialmente quando era de noite. As gotas pareciam feitas de prata ao refletir o brilho das luzes artificiais da cidade. E as luzes, não importava o tempo, se era noite ou se um sol moribundo ainda iluminava o alto dos edifícios, era quase certo que elas se acendessem de uma hora para a outra. Coisa terrena, que ele aprendera a admirar com uma fascinação que chocava a maioria de nós, anjos.
O apartamento em que vivia era muito simples, durante o último ano conseguira acrescentar à cama de segunda-mão, de solteiro, e ao fogão ultrapassado, que ele descobrira ser essencial na sua nova vida, um armário, comprado numa loja de varejo, e um pequeno aparelho de TV, que lhe distraía como nenhuma outra coisa conseguira antes. As pessoas dentro daquela caixa eram tão bonitas, tão sorridentes, pareciam seres de outro mundo. De um onde ninguém passava fome, tristeza, e onde só havia jogos divertidíssimos cujo vencedor levaria uma cozinha completa, um aparelho de som e um computador portátil.
Michael sabia que o mundo na realidade era um só. As pessoas é que se iludiam, achando que se podia migrar de uma esfera para a outra, como num abrir e fechar de portas. Ele mesmo havia buscado algo além da sua própria realidade. E o que havia encontrado? Uma porção de dispositivos que emitiam algum tipo de som, executavam alguma tarefa, serviam a algum propósito que ele jamais compreenderia na sua complexidade humana.
Não pensava que a experiência fora uma total perda de tempo. Havia coisas, como a chuva, que possuíam uma graça simples que enternecia seu coração. Fazia-o sentir saudades de casa. Pobre Michael.
Durante o tempo que passara a conviver com as pessoas - que quase sempre fingiam que ele não existia, que nem olhavam em sua direção, que, se pudessem, passariam por cima, tal a ignorância de suas almas pequenas -, durante esse tempo todo, estivera a colher graças que desapareciam, esmagadas sob os passos dos homens. Tornou-se cada vez mais difícil se iludir a respeito da perfeição que Deus almejara ao criar essa raça. Onde ela estava afinal?
Michael observava a chuva caindo, da janela do seu minúsculo apartamento, naquele edifício caindo aos pedaços, de parede tão fina que ele podia ouvir tudo o que os seus vizinhos faziam. Seus sons tipicamente humanos. Às vezes, ele queria calá-los, para poder ouvir com mais clareza a melodia das gotas batendo contra o telhado. A melodia que eles pareciam ser capazes de ignorar completamente.
Nas ruas, havia gente correndo, abrindo guarda-chuvas idênticos, abrigando-se sob toldos de estabelecimentos comerciais, pegando táxis para voltar para casa sem ter que se molhar. Elas fugiam da chuva, como se entendessem sua intenção de lavar a Terra e quisessem proteger a própria sujeira.
Michael abandonou seu posto junto à janela embaçada e partiu do apartamento, despreocupado quanto a trancar a porta. Havia algo em seu íntimo que achava desnecessário fazer segundo as instruções que se incutiram em sua mente desde o primeiro dia em que foi perambular entre seres capazes de se furtar mutuamente.
A chuva, aos poucos, ensopou suas roupas, fazendo-a colar na pele. Os andantes passavam direto enquanto se ocultavam sob a sombra de grandes cogumelos pretos.
Michael correu, molhando-se cada vez mais, seu rosto pingava, seus olhos também. Nossos próprios olhos estavam molhados. Queria que aquela chuva lhe lavasse, consumisse todos os pecados que absorvera durante o tempo que estivera a agir como humano, movido por uma curiosidade indigna de sua estirpe.
- Pai, perdão! – rogou aos céus e um trovão lhe respondeu, instantaneamente – Aceita teu filho de volta!
As pessoas começaram a reparar em Michael, paravam e assistiam ao seu monólogo sob a chuva.
- Aceita-me, novamente!
Alguns murmuravam acerca da loucura que consumia o rapaz. Da bebedeira que embalava seu raciocínio.
- Perdoa-me, Senhor!
E, sob os olhares incrédulos, tanto os nossos, quanto os deles, um raio desceu à Terra, consumindo num clarão branco o filho desgarrado dos céus, que teimara em vestir uma máscara de impurezas, que não servia em sua face cândida.
Nunca tente ser quem você não é.