O Tributo

Naquele dia de sol, a praia estava tomada de gente, o mar estava calmo e poucas nuvens brancas pairavam no ar. Por entre as pessoas estendidas na areia ou sentadas em suas cadeiras, por entre as crianças brincando e os caminhantes, surgiu aquele homem.

Vestia-se de forma comum, tênis, meias brancas, bermuda jeans clara e camiseta de mangas. O que tinha de estranho era o que carregava consigo.

Com um olhar fixo no mar calmo a sua frente, o homem andava a passos seguros em direção a areia escura e batida, sem se importar com tudo o mais a sua volta. Chegou a um determinado ponto em que não havia muitas pessoas ao seu redor e largou a pesada bolsa no chão.

Tirou os calçados e meias e colocou-os junto a esta bolsa. Ajoelhou-se e beijou o solo, despertando a atenção dos que o viram passar. Quem o via naquela posição, imaginava que fosse um muçulmano ou coisa assim.

Não se importando com nada, ergueu o corpo do solo e procurou o sol com os olhos. Quando se deparou com ele, abriu um largo sorriso e ainda de joelhos, abriu os braços como para abraçar o mundo e para os que estavam ali, parecia que o mundo se confortara por alguns instantes.

Quem possuía óculos de sol, retirou e quem jogava tamboreu ou frescobol, parou. Até as crianças que cavavam entretidas os fossos de seus castelos de areia, pararam para admirar o terno abraço e sorriram também.

Depois disso, retirou rapidamente a bermuda e vestiu uma espécie de saia xadrez de amarrar, que as mulheres chamariam de saia envelope e que ele preferia chamar de kiut. No lugar da camiseta branca, ele vestiu uma pesada cota de malha, semelhante a dos cavaleiros medievais; calçou meias longas, quase que até os joelhos e mesmo debaixo daquele ardido sol, vestiu uma capa de frio, que parecia ser de lã, num tom escuro de azul que lhe cobria todas as vestimentas, com exceção das meias.

Retirou ainda da bolsa alguns apetrechos e com um deles, que parecia ser um bastão longo ou algo do gênero, riscou ao redor de si um círculo na areia.

Em plena luz do dia, parecia ser um espetáculo teatral, ou uma insanidade sem tamanho. Mas, por um motivo ou por outro, todos pararam para olhar. Pegou uma garrafa escura, com um liquido avermelhado em seu interior e encheu com ele, uma taça de pedra. Algumas pessoas meio receosas se afastavam, enquanto que outras movidas pela curiosidade, se aproximavam.

Sacou ainda da sacola que carregava, um grande chapéu de pano circular, que pôs na cabeça, parecido com um pequeno sombrero, mas que na verdade lembrava os chapéus utilizados por peregrinos do caminho de Compostela e um grande cachimbo que foi preenchido com ervas de diferentes saquinhos. Acendeu-o com fósforos comuns e sentou-se na areia de pernas cruzadas, como se meditasse.

As nuvens de fumaça subiam poeticamente aos céus e se juntavam ao longe com outras nuvens, um pouco maiores e mais escuras que começaram a se formar. Ao terminar de fumar, as nuvens já cobriam quase que todo o céu. Depositou de forma reverencial o longo cachimbo adornado com penas coloridas sobre a areia e tomou com a destra o bastão que parecia aguardar a seu lado.

Sua voz era como um trovão e ele disse: - Ar! Este é o teu tributo! Toma-o, pois agora somos um só! – Ao mesmo tempo em que pronunciava as palavras, girava o bastão no ar desenhando um símbolo semelhante a um número oito.

Retirou da bolsa uma outra garrafa, só que esta era de plástico e derramou sobre as roupas que estavam a sua frente, com as quais havia chego na praia. Atirou também sobre as roupas a garrafa, segurou a caixa de fósforos com a mão esquerda e apontou um fósforo sobre a caixa, prendendo-o com um dedo, como se fosse um gatilho. Apontou para as roupas que pela influência do sol, faziam o líquido derramado evaporar, exalando no ar um cheiro adocicado de álcool. Antes de disparar o fósforo com um peteleco, ele falou novamente – Tomai fogo o que é teu por direito. Consome o que é vão e me transforma no que eu realmente sou. – Com o peteleco, o fósforo riscou e cortou o ar em chamas, pairando sobre o monte de roupas. Uma pequena explosão se deu quando o fogo ateou e novamente se ouviu sua voz – Fogo, este é o teu tributo!

Enquanto o fogo consumia sua antigas roupas a sua frente, ele tomou o cálice e disse – Água, tu que estás no mar no ar, nas nuvens, no solo, no sangue e no vinho. Tu que és a cura e a vida, traga-me a cura e a vida eterna e assim como eu te tomo, tomes a mim no futuro, para que a vida renasça. Água este é o teu tributo! – quando terminou de falar, bebeu inteiramente o líquido que havia no interior da grande taça e a depositou com reverencia a sua frente.

O fogo já estava praticamente extinto, quando ele apagou o restante das cinzas com o vinho que ainda se encontrava na garrafa. Cavou rapidamente um buraco a sua frente e em seu interior depositou as cinzas dizendo – Terra! Tu que és mãe e compreende os meus atos e conheces os meus passos e minhas pegadas, que não só te acariciaram como também te feriram, receba por hora os meus restos, para que como a lendária phoenix eu possa ressurgir das cinzas. Mãe terra! Este é o teu tributo!

Neste momento as pessoas ao seu redor estavam prestes a render-lhe palmas, todas de pé achando profundo e bonito, sem entender ao certo o que se passava. Num ímpeto, que fez alguns se afastarem, ele retirou da sacola um último objeto ainda. Uma bem trabalhada espada.

Ergueu-a aos céus, assim como erguido também estava seu corpo e para o sol que se afastava e para as pesadas nuvens que circundavam por sobre sua cabeça ele declamou:

- Ó tempo, que me faz sofrer. Tu és o que na criação, senão uma pobre e infeliz criatura. Eu sou mais do que tu, tempo cruel e tenho o poder sobre ti. – quando falou esta última frase escutou-se um trovão ensurdecedor, em resposta ao insulto direcionado ao tempo. – Como ousas, tempo maldito, querer ser mais que o próprio poder do infinito? – E a partir deste instante a cada frase por ele pronunciada, um novo e mais poderoso estrondo se escutava.

– Eu sou a Terra! – e ela tremeu assim como todos os que estavam presentes.

– Eu sou a Água! – Fazendo com que o mar se agitasse e gotas de chuva caíssem.

– Eu sou o Fogo! – e o sol queimou como num deserto, num dia de verão.

— Eu sou o Ar! – e o vento soprou, fazendo as nuvens girarem ao seu redor, levantando a areia e cegando por instantes aqueles que por ali estavam. O sol queimava e a chuva caia, a terra tremia e um túnel de vento desceu dos céus como se um tornado naquele instante, naquela praia, houvesse se formado. Com exceção da areia que voava ao redor daquele círculo, em seu interior nada mais se via e por entre os sucessivos estrondos de raios e trovões, ainda se puderam escutar os altos brados do homem que diziam:

— Eu sou o tudo e o nada! Akasha! Eu sou o teu tributo! Neste momento um raio desceu reto e devastador ao centro do círculo formado pelas nuvens. E foi só.

Não sei como me recordei de tudo isso, mas acho que nada disso se falou, nem nos jornais e nem a boca pequena, a não ser de um súbito vento que levou alguns guarda-sóis e levantou alguns quilos de areia. Mas do que mais me recordo, por incrível que pareça, é que desde a hora em que ele vestiu suas roupas e riscou o círculo no chão, até terminar por desaparecer por completo, se passou apenas um segundo.

Paulo Garcez 20/06/2003.