Prazer, anjo da morte

Prazer, Anjo da Morte

Já vi de tudo desde que fiquei encarregada dessa tarefa. Vi de tudo mesmo. As pessoas não fazem idéia de quanto mal existe nesse mundo. Hoje estou sentada em uma calçada gélida, esperando a recém-chegada que devo levar até seu novo lar. O que mais me intriga é o fato de dizerem que eu não tenho sentimentos. Será que sou eu que não tenho sentimentos? Simplesmente faço o meu trabalho, sou como um animal adestrado, faço cumprir as ordens do meu superior. Simplesmente.

Pra se ter idéia, do que eu já passei... Já levei pai de família e assistindo sua despedida vi crianças famintas e magras com uma mãe em desespero sem saber o que fazer para seus filhos sustentar. Já levei a mesma mãe, que pensando não suportar, tirou a própria vida deixando seus pequenos para trás. Levei dois dos pequenos, que sem alimento foi sucumbindo até não mais agüentar. Já acompanhei gente ruim, que fez uma inteira nação se revoltar e me obrigar a levar milhares de pessoas, pois por ele era considerada uma raça desigual, e claro, também acompanhei essas milhares de pessoas. Já fui encarregado de arrastar comigo almas que não queriam ir, como um homem que vendo a mulher sofrer da mesma doença não a queria deixar para trás, infeliz alma. Já levei comigo gente de bem que sofreu mais após a morte do que em própria vida, como um senhor que queria mudar para sempre a historia de uma nação e que foi brutalmente assassinado, mas que comigo ficou a ver a despedida de seu corpo e que comigo viu noticias da pior mentira, dizendo que o mesmo tinha se suicidado por não agüentar

mais a pressão do cargo, infeliz país. Já levei almas felizes, como uma garota de apenas 9 anos que se encontrava trancada em um porão durante 3 anos por seu seqüestrador, o mesmo abusava da garota todas as noites. Ela me conta que decidiu reagir, mas ele era mais forte e a estrangulou, ela se pergunta por que não tinha pensado nisso antes. Nunca vi alguém tão feliz por me ver. Já encontrei almas relutantes que não aceitaram ser levadas, pois continuavam com os vícios de quando ainda era vivo. Já levei ao mesmo tempo vitimas e assassinos, até mesmo os que se amavam, ambos com peso na alma, um não acreditando que a pessoa que considerava ser seu melhor amigo tirou o que mais tinha de precioso, a sua própria vida, o outro, sem saber se fez a coisa certa. Já levei comigo pessoas que não se aceitavam mais e queria tanto o descanso eterno. Já levei pessoas que me viam todos os dias no leito do hospital, mas que eu ainda não podia levar, o que fazia a pessoa sofrer ainda mais antes de partir. Já tentei acalmar pessoas que no meio do terror tentava falar com alguém que tinha gente viva e que poderia ainda sobreviver. Sendo assim, a alma desesperada esperava angustiada para depois sair junto com mais uma alma ou sorrir por seu ente querido ser salvo. Já deixei de levar pessoas, que no ultimo instante é salva por um ser celestial. Tantas pessoas...

Agora enxergas o meu eterno castigo? Andar em volta ao sofrimento, a massacres, guerras, loucos, chacinas, suicídios... Eu sei que foi devido às escolhas que eu fiz durante a vida, sei que o meu castigo deveria ser eterno... Mas, no fundo, vocês todos têm razão. Não tenho mais sentimentos, nem mesmo carrego comigo um coração, me acostumei com a escuridão, me acostumei com lagrimas, me acostumei com gritos e só ouço tudo calada. Eu só me sinto incapaz quando é com um ser indefeso, como este que eu espero para levar. Como podem? Acabou de nascer e já foi abandonado para a morte, ninguém o encontra, o mesmo já perdeu as forças. O tempo passa e mais uma vez levo comigo uma alma para o inesperado.

Nani Corlaite
Enviado por Nani Corlaite em 30/05/2011
Reeditado em 05/04/2012
Código do texto: T3003845
Copyright © 2011. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.