Cicatriz

Para o passado.

A história dela não é. Grandiosa. Sua história não é. Não há muito a mostrar. Mas eu conto a história que se passa mais dentro. Dentro dela. Uma vida miserável. Que eu não entendo. Por isso conto. Conto com você para me ajudar. A entender. Essa vida pontuada. Por cicatrizes cujos pontos estão à mostra. O tempo todo. Por baixo delas há apenas impressões as quais eu não me atrevo a conhecer com certeza. Porque tenho medo de me machucar com tanta dor. Eu sei. Que ela sofre. Primeiro porque quer arrancar o homem de dentro. O homem que a torna travesti. Trava seus sonhos, cala. Sua boca. Segundo porque seu anelo maior é a união com um homem que lhe dê. Amor. Todo o amor para calar. Sua dor. Afora a dor de dentro derramada durante os dias ela passa força. Ela enforca suas paixões na calcinha. Porque o sexo por dinheiro lhe traz uma. Esperança. A esperança deve ficar isolada. Das outras palavras. Porque nisto ela se parece com Pandora. É só o que lhe resta. Além da vida. Não é bonita. Não é casta. Não é limpa. Mas no mundo ninguém é. Senão suas cicatrizes. Tal como qualquer ferida de qualquer um. O mundo morreu. Há somente sua alma agonizante. Eternamente agonizante. Não dizem que as almas. As almas são eternas? O legado dos eruditos se perdeu. Queimaram livros. E pessoas. Ficaram poucas. Páginas. Menos pessoas. Eu escrevo algumas. E há tão poucos para ler minhas páginas. Eu crio personagens para o mundo se sentir menos. Solitário. Silencioso. Ela já não é. Há as duas crianças de que cuida. Filhos agora. Não para redimi-la. Só para não ficar tão. Só. Ela jurou. Matou a mãe. Que matou o pai. Que amava. Mas seus amores davam nisso... Tentava descobrir. O amor por essas crianças. A menina, ela sabia. Que seria uma grande prostituta. Dentro de pouco tempo. Não porque ela mesma se prostituia. Mas porque sabia. Era feia. A menina. Mais magra que a fome. Mas ela sabia que ela tinha futuro. O menino era Belo. Um deus antigo. Pequeníssimo. Um príncipe. Que faria feliz qualquer mulher. Porque ela via. Via entre as pernas dele. Um grande futuro. Um futuro que desprezava. Entre as suas pernas. Não gostava de ser. Homem. Um membro que ao mesmo tempo. Queria tê-lo dentro, mas queria cortá-lo. Ato simbólico. Para matar o homem. O homem que a faz sofrer. Ela não quer ser mulher. Não quer ser homem. É travesti. Ela o sente como se fosse uma limpeza. Algo pior que suas paixões mortais. Que a vida que era obrigada. A engolir com choro. Ele fazia o tipo ideal. Não sofrera com as cicatrizes. Ignorava o corpo. Ele estava dentro. Na mente dela. O ser travesti queria que ele estivesse morto. Não! Ele queria que ele não tivesse existido. Porque ele tem história. E se chama passado.

DominiCke Obliterum
Enviado por DominiCke Obliterum em 01/04/2011
Código do texto: T2884388
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