Cego e obscuro
Ouço as batidas do outro lado, onde é mais claro, mais movimentado... e mais vivo. Aqui, nenhum som que não seja o dos vermes cavando cada vez mais fundo na terra em busca de comida. Nenhum som que não seja o do meu próprio ser em lenta decomposição.
Há anos que ouço o mundo através de quilos de terra úmida e fétida. Meus olhos há muito tempo se fecharam. Ou se habituaram à escuridão. Não tenho certeza do que houve aos meus olhos... mas meus outros órgãos responsáveis pela captação daquilo que acontece à minha volta; os meus outros órgãos sensoriais ainda funcionam muito bem. Não sinto falta da luz, de forma alguma, mas há coisas, ou houve coisas das quais eu ainda sinto alguma falta, como o bater das asas de um pássaro em pleno voo, uma rosa desabrochando ainda com o orvalho da manhã a brilhar em suas pétalas de cor vibrante, minhas mãos contra a luz do sol. Sinto falta das visões que eu tinha pela janela do meu quarto, da cozinha da casa de minha mãe, da janela que dava para a varanda e, consequentemente, para o jardim da frente. Sinto falta não apenas de ver essas coisas, mas de tocá-las e sentir sua textura, sua matéria, sua presença física obliterando qualquer chance que fosse de eu estar sonhando adormecido ao fundo de uma tumba escura e trancada.
Aqui, nas entranhas da terra, feito mais uma minhoca, cego e insignificante, descanso eternamente sem sequer estar morto, pois morrer não é um luxo ao qual posso me regalar; não, vampiros nunca morrem de verdade. Meu coração não bate, minhas veias não se inflam de sangue como antes, meu cérebro não dispara mais carga alguma de ínfima eletricidade, sou só um motor para uma alma que usufrui da carne transmutada em qualquer matéria sobrenatural, cada fibra vibrando como a corda de um instrumento puramente maldito que faz choramingar fantasmas e velhos lobos moribundos.
Ouço as vozes, elas chegam até mim de muito longe e de algumas delas eu gosto mais do que de outras. As que eu gosto cantam, pronunciam palavras doces em ouvidos por elas amados, dão conselhos de mães sábias a filhos tolos, chamam cães de “meu amigão” e aquelas que eu não gosto gritam palavrões a torto e a direito, gargalham sarcasticamente pelas costas, entoam promessas vãs por motivos abjetos.
Algumas vozes eu simplesmente calo, por medo de que a força do que elas dizem façam com que eu me erga da terra. Eu me fecho para elas. Apago suas mensagens tipicamente humanas de medo e valentia, esperança e esmorecimento, sonhos e frustrações, amor e ódio, vida e morte. São vozes que me fazem querer chorar, por diversos e desvairados motivos, inclusive pelo desejo de resgatar velhos hábitos... mas, eu me vejo tão distante, tão isolado no tempo, que esta escura e profunda sepultura é quase como um santuário. E tal qual um santo quebrado, eu me sinto de certa forma feliz relegado a sua implacável obscuridade.