Culpada
Sua respiração estava entrecortada. As lágrimas desciam por seu rosto. E tudo o mais doía, principalmente algum lugar ali, bem fundo no peito. Ela não sabia se era por ódio, por tristeza, por amor...
Ou por saudade.
Tudo desaparecia a sua volta. Ela própria desaparecia e mergulhava no limbo, dentro de si mesma. Como se toda sua vida estivesse se esvaindo por um buraco profundo, e sua alma se transformasse em pó. Seus membros estavam insensíveis. Sua pele perdera totalmente o tato, e ela já não conseguia sentir a ponta da lança que, afiada, fizera talhos na ponta de seus dedos.
Sua insignificância a sugava também. Abria um buraco dentro dela própria e a puxava para baixo. Ela afogava num escuro profundo e vazio. Totalmente insensível.
Ela se afogava no próprio sangue. Afogava-se cada vez mais em sua própria vida. A vida que vivera dentro de sua cabeça, e agora lhe fora negada. Negada para sempre.
Implorava por dentro. O brilho das estrelas já não era mais visível do lado de fora da janela. Como cada ponto luminoso de sua vida, elas se apagaram. Uma a uma, as estrelas perdiam o brilho no firmamento e desapareciam. A lua, o sol da meia noite, estava opaca em todo seu brilho, e parecia não ter mais graça.
Não sem as milhares de estrelas a sua volta.
Ela se sentia como se uma mão entrasse a força em seu peito e agarrasse seu coração. E, como se ele fosse feito de areia, fosse esfarelado. Como se ele não fosse nada. E a sensação que vinha depois não era a de não ter mais coração. Era de ter milhares deles, mortos, que não batiam mais, mas que podiam se magoar. Milhares de corações despedaçados e feridos. Que ainda doíam infinitamente.
Só não sabia se era de ódio, tristeza, amor ou saudade.
As lágrimas já haviam se esgotado. E por mais que ela tivesse vontade de chorar, não havia mais nada para se derramar. Seu rio já havia secado. Um rio sem peixes ou qualquer vida. Sem nenhum vilarejo. Um rio só de água.
Um rio que havia secado.
Ela sangrava. Muito. Há alguns instantes, ela ainda tinha sensibilidade para sentir o líquido viscoso com a ponta dos dedos. Mas agora ela só estava levemente consciente de sua morte eminente. Ela só estava levemente consciente da vida esvaindo de si mesma. Ela só estava levemente consciente de tudo o mais.
Menos dele.
Ela jurava que ainda podia sentir o ódio vindo dele. Mesmo a quilômetros de distância. Mesmo com séculos os separando. Mesmo sem ver o seu rosto. Se ela fechasse os olhos e se esforçasse, ainda podia ver o único fio de vida que ainda se prendia ao dela. A sua única razão para ficar tanto tempo numa vida insuportável. A única razão para ter esperança. A única razão para continuar andando por essa Terra e procurar em todos os rostos o dele.
Mas agora ele fora embora de vez.
E tudo o que sobrara para ela era se afogar nas lembranças que tinha. As únicas jóias que lhe sobraram da vida vazia. Duma vida feliz que parecia tão distante que não fora vivida por ela própria.
Ela mal conseguia lembrar o que era sorrir com uma felicidade sincera.
Agora rastejar não tinha efeito algum. Porque ele não estava lá para voltar. Para encará-la todos os dias e dizer que ela era culpada. Ele sequer estava lá para jogar toda a culpa nela. Toda a culpa da infelicidade que ele sentia. Toda a culpa da falta de vida que ele nunca teve. Toda a culpa por sua imaturidade. Toda a culpa por sua dor. Toda a culpa de sua perdição.
E agora que ele tinha ido embora, ele tinha levado consigo toda a vida que ela carregara consigo mesma. Por anos. Todos os sorrisos, todas as risadas. Todas as lágrimas de amor e todas as dores de saudade.
Ele tinha levado a vida dela embora e nem se dava o trabalho de acabar com o corpo. Ele deixara na Terra um corpo vagando sem alma. Sem vida alguma.
E ele ainda sentiria falta dela. Ele ainda sentiria falta de todas as mentiras que contara para deixá-lo feliz. Ele sentiria falta das horas jogadas fora de conversa sem sentido. Ele sentiria falta dos abraços sinceros e dos beijos cheios de vida. Ele sentiria falta do sorriso que ganhava todas as manhãs de alguém que ele próprio matara.
Mas é óbvio que a culpa era dela.
A vida dela se fora. A última coisa que ela escutara, ao longe, era o som cálido e pálido da voz do garoto que amara um dia, dizendo que a amaria para sempre, que a queria bem, que nunca deixaria nenhum mal atingi-la.
Mal sabia ele, de ingenuidade, que o mal era ele próprio.
Ele não poderia salvá-la dele próprio.